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23 outubro 2020
07:00
Gonçalo Palma

Estivemos com Bruce Springsteen no Zoom: entrevista sobre o novo álbum "Letter to You"

Estivemos com Bruce Springsteen no Zoom: entrevista sobre o novo álbum "Letter to You"
Danny Clinch (cortesia Sony Music)
"Letter to You" sai hoje. O disco foi composto e gravado de rajada, em tempo recorde.

Nesta época pandémica, tem havido muitas reuniões zoom, mas nem todas têm do outro lado a face de Bruce Springsteen, sentado na sua linda sala de ensaio, toda de madeira, com um arsenal de guitarras atrás de si. O motivo do encontro entre os jornalistas (na maioria, latino-americanos) e Bruce Springsteen é o novo álbum, “Letter to You”, gravado em menos de cinco dias, em novembro passado, antes da pandemia ter aparecido e piorado isto.  
 
É um álbum de banda (da E Steet Band) e sobre bandas, gravado praticamente ao vivo, sem truques nem delongas. A entrevista é mediada pela animadora de rádio escocesa Edith Bowman. 
  
  
O começo: a guitarra oferecida pelo fã 
Entre setembro de 2017 e dezembro de 2018, Bruce Springsteen cumpria a residência de atuações autobiográficas de “Springsteen on Broadway”, onde tocava sozinho e contava histórias, como se estivéssemos a ver ao vivo o livro sobre a sua vida Born to Run, escrito na primeira pessoa. A sua mulher Patti Scialfa também marcava presença, participando nos coros de dois temas. 
Numa das saídas a pé do Walter Kerr Theatre, em Nova Iorque, Bruce Springsteen teve um momento inusitado que abrir-lhe-ia novos horizontes. 
"Estava a sair da sala quando vejo à minha espera no passeio um jovem a segurar uma guitarra. Julguei que ele quisesse que eu lhe autografasse [o instrumento]. Mas ele disse-me ‘não, não, não, eu quero oferecer-te’. Dava logo para ver que era linda. Levei-a para casa, apreciei-a e era linda de se tocar. Tinha um som bonito, vários tipos de madeira, era uma autêntica obra de arte. Quando saí da sala de estar e senti vontade de compor, peguei nessa guitarra, porque era tão fácil de tocar, a maioria das [novas] canções vieram [dessa guitarra]. Portanto, tenho uma dívida para com ele [o fã], onde quer que esteja". 

    
O mote: a morte do último colega da primeira banda 
Bruce Springsteen iniciou-se nesta vida de músico em 1965, quando ainda era adolescente. Essa banda eram os Castiles, da cidade de sempre do rocker, New Jersey.  
"Na altura não havia velhotes de 25 a 30 anos de idade a tocar rock & roll. Havia só miúdos a tocar. Foi uma era fascinante e dourada, onde havia todo o tipo de salas de espetáculo em todo o lado, desde associações de veteranos de guerra, salas de sindicatos, [o clube nova-iorquino] Elks Lodge, [a ordem religiosa], Knight of Columbus, salões de dança de liceus, pizzarias, salas de bowling, feiras de bombeiros, carnavais. Havia tantos sítios onde se podia tocar e aprimorar o nosso ofício".  
Mas esses tempos estão cada vez mais longe, bem como as pessoas que os viveram. 
"Eu tinha um amigo próximo da minha primeira banda de sempre [o guitarrista George Theiss, que tocou também na banda sequente de Springsteen, os Steel Mill] que estava muito, muito doente, com poucas semanas para viver. Fui visitá-lo ao sul, onde ele vivia. Era o último membro vivo da minha primeira banda para além de mim mesmo. Quando ele faleceu, fiquei só eu. Foi uma sensação muito estranha ao recordar a tua juventude e todas aquelas pessoas que me diziam tanto estarem mortas. Então, escrevi a canção Last Man Standing. Assim que a compus, a barreira quebrou-se e uma série de canções seguiu-se em sete a dez dias. E isso aconteceu na guitarra que aquele miúdo me deu". 


  
O tema: a banda de rock & roll 
A auto-reflexão imposta pela condição de ser o único sobrevivente da sua primeira banda levou Bruce Springsteen a viajar no tempo pela carreira toda, incluindo a incontornável E Street Band. Isso deu a “Letter to You” um conceito temático. "É a primeira vez que escolho como temática [de álbum] a música em si mesma. É sobre rock & roll, é sobre estar numa banda, ao longo de toda uma vida. Portanto, engloba a minha reflexão sobre a minha primeira banda e todos os seus membros, a reflexão sobre a banda e, claro, a E Street Band com quem tenho estado ao longo dos últimos 45 anos". 


  
O feito: gravação do álbum em menos de cinco dias 
Aos 71 anos, Bruce Springsteen sentiu a vertigem de bater um recorde com a E Street Band. Se as composições das canções duraram dez dias, o tempo de gravação foi de metade. 
"Gravámos o álbum em quatro dias e no quinto dia estivemos só a ouvir e a contar histórias. Foi um processo incrível, não podemos prever coisas fantásticas como esta. Cada música foi feita em três horas, a banda gravou totalmente ao vivo, as vozes foram registadas ao primeiro take. Foi uma experiência única e maravilhosa para todos nós neste trajeto tão longo. É um regresso à edição ao vivo de temas como Darkness on the Edge of Town ou Born in the USA. Mas mesmo nessas canções, dobrámos as vozes, não foi o que aconteceu desta vez". 


Bruce Springsteen reviveu a mecânica de estúdio do final dos anos 70. "Só queria o som mais simples de banda. Não queria metais de sopro, nem cordas. Não quis instrumentos estranhos. Só queria dois teclados, guitarras, baixo e bateria. Quis apenas o som cru de banda ao modo de Darkness on the Edge of Town. Funcionou como uma gravação rápida e ao vivo". 


Houve uma novidade, que tornou a experiência de gravar "Letter To You" ainda mais interessante. "Costumo trabalhar com maquetas, o que é um erro porque assim que fazes uma demo, tu ficas vinculado a ela e não queres perder coisas dela. Portanto, a primeira coisa que decidi foi não fazer quaisquer maquetas, segundo sugestão da banda. Alguém disse-me: ‘Não estejas sempre a fazer maquetas. Desse modo, a primeira vez que ouvires [a gravação], vais sentir um som fresco com a banda a tocar. Gravei os temas no meu pequeno iPhone, comigo e a guitarra acústica, e não fiz mais nada até a banda entrar em estúdio. Depois levanto-me e apresento o resto da música à banda. Eles aprenderiam e depois vamos com firmeza para a cabine e para o quarto, até o tocarmos". 
  
  
Dissecação de algumas canções novas 
Bruce Springsteen não escreveu apenas novas canções de raiz, quando redescobriu alguns temas no baú, como Janye Needs A Shooter, If I Was the Priest ou Song For Orphans. "Foi muito divertido cantar com a mente de um tipo com 22 anos mas com a voz mais velha".  
Sobre 'House Of A Thousand Guitars', "é uma daquelas canções que tem um grande título”. Bruce Springsteen decidiu “escrever uma canção sobre o mundo que criei com os meus fãs e com a minha banda. É um tipo de canção que mais ou menos abarca as dimensões espiritual, emocional e intelectual” e que representa um marco central em todo o disco.  
Ghost, alteado pelo fôlego épico da E Street Band, tem a ver diretamente com as memórias da primeira banda de Springsteen. “Em qualquer escrita, o detalhe é fundamental para a verosimilhança da tua história. No caso de Ghost, que era uma canção em que discutíamos que o detalhe era importante, toda a gente tem tido um amigo cujo o seu casaco, os seus livros, os seus discos e todas essas coisas tinham um grande significado, incluindo para nós. O Ghost é uma espécie de história sobre um jovem a quem largam todos esses objetos. É uma espécie de lista de artigos que funcionam como amuletos para celebrar a vida de alguém: a guitarra, o amplificador, as roupas". "Nós somos aquilo que vestimos, o modo como nos penteamos, os discos que adoramos. os livros que lemos, as guitarras e os amplificadores que usámos. A vida era totalmente assim em 1965 e 1966".

  
A banda de sempre: E Street Band
Desde o início dos anos 70, quando Bruce Springsteen era ainda um jovem adulto a tentar sobreviver como músico profissional, que a E Street Band o acompanha. O baixista Garry Tallent (o músico mais antigo da E Street Band), o intuitivo das teclas Danny Federici e o super-saxofonista Clarence Clemons já acompanhavam Springsteen no início de tudo. “Imagina que estás no liceu e imagina que tens 70 anos. E imagina que trabalhas com as mesmas pessoas toda a tua vida. Não há negócio no mundo em que isso ocorra, exceto numa banda de rock & roll. Tem sido um privilégio e uma honra e um milagre preservar todas estas relações ao longo de todo este tempo, porque exige um conjunto de talentos de sociabilidade e de tolerância para com as fraquezas dos outros e… bem… exige a tolerância deles para comigo. É um grande desafio, mas quando se consegue, é muito compensador”.
Espiritualmente, os falecidos Danny Federici e Clarence Clemmons continuam presentes na banda. Estão na sala de ensaios alguns dos objetos dos músicos, como o estojo de saxofone de Clemmons. Bruce Springsteen faz sempre questão de os apresentar a novos membros. “Estivemos 40 anos juntos com o Clarence e o Danny e isso nunca se apaga. Eles farão sempre parte da banda, eles andarão sempre connosco, seja quando subimos ao palco, seja quando vamos para estúdio. Eles tinham um estilo de tocar único e temos tido a sorte de poder contar com músicos que honram a sua herança, tanto estilística como espiritualmente”.    

A primeira banda: The Castiles
A banda onde Bruce Springsteen começou a dar os primeiros passos como músico dava pelo nome de Castiles. Tocavam em todo o lado, enquanto aperfeiçoavam o ritmo e tentavam ajustar as pessoas às funções instrumentais certas. Atuaram em parques de caravanistas, em parques de drive-in, em ringues de patinagem e até em hospitais psiquiátricos. Tocavam onde desse.
Deu para Bruce Springsteen aplicar muitas vezes o verbo aprender na primeira pessoa. "Aprendi a estar na linha da frente de uma banda. Aprendi a conduzir um espetáculo. Aprendi a atuar ao vivo. E, bolas, aprendi que não queria estar numa banda. Aprendi que queria ter uma banda mas que não queria estar numa banda. Foram grandes lições para o futuro”.

A arte: as canções  
A longevidade da vida aumenta-nos mais as dúvidas que as certezas. Ao fim de mais de 50 anos nesta arte das canções, Bruce Springsteen não lhe desvendou ainda o mistério. “A escrita de canções é geralmente uma experiência aterradora e realizadora. É aterradora porque nunca sabemos se vamos voltar a conseguir compor, porque se trata de um truque de magia que não sei bem como acontece. Tenho feito isto há 50 anos. Não sei bem como a canção surge e não conheço ninguém que esteja disponível para explicar isso, porque se arranca uma coisa do nada e se cria algo físico a partir daí. Está apenas no ar, nas emoções, na mente, na alma, no espírito, no coração, no intelecto. Apanha-se algo do ar e cria-se algo. Pode ser assustador, mas quando acontece e é uma coisa boa, é uma das sensações mais maravilhosas da vida”.
Mas Bruce Springsteen partilha connosco algumas dicas para entrar a eito no campo da criação. “Qualquer canção necessita de uma boa metáfora para começar. Um título excitante ajuda sempre: Thunder Road, Born To Run, Darkness on the Edge of Town, The Rising, Racing In The Street, isso são tudo bons títulos. Um bom título guia-nos pela canção adentro. Apenas tento segui-lo, como alguém que vê um mapa. Encontro o caminho para atravessar a floresta e chegar ao âmago do assunto de que estou a escrever. Apenas acontece. Começo por escrever metade de uma canção ou um terço. Esporadicamente, escrevo tudo de uma assentada, mas normalmente é só um bocado de uma refeição. Mas normalmente, acontece tudo muito rapidamente num curto período de tempo, o que é sempre um tremendo alívio. Quando acabo, sinto que tenho o material para um disco. Penso ter o início para algo de algo bom”.    

  


 

Fotos e imagens: Danny Clinch/Sony Music 

   

  

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