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13 abril 2021
14:02
Silvia Mendes

O Gajo: "Subterrâneos" é um mergulho ao interior de cada um

O Gajo: "Subterrâneos" é um mergulho ao interior de cada um
Jorge Buco
João Morais lançou o novo disco em março. "Subterrâneos" é um "filho" da experiência pandémica mas também uma homenagem às referências literárias do músico.


Depois de "Longe do Chão" (2017) e do quádruplo EP "As 4 Estações do Gajo” (2019), o músico João Morais lançou agora o álbum "Subterrâneos", o terceiro de originais que assina enquanto O Gajo.

João Morais, de 47 anos, é guitarrista autodidata, designer, tatuador e toca há mais de três décadas. Em 2016, o músico, que passou por bandas do universo punk/rock como os Corrosão Caótica, os Carbon H ou os Gazua, trocou a eletricidade pela precisão acústica, passando a assumir sobretudo o comando da viola campaniça, também conhecida por viola alentejana, que descobriu em Beja, Alentejo.

Em 2020, a pandemia suspendeu a Cultura mas não a vontade e a capacidade criativa de João Morais que, apoiado pelo Fundo Cultural do Ministério da Cultura, voltou a entregar-se de mãos e alma à viola campaniça e a mergulhar na composição de um novo disco, o primeiro que fez em formato trio. Em "Subterrâneos", que é o resultado desse mergulho em tempos que nos atiram para a introspeção, Carlos Barretto assume a posição do contrabaixo, José Salgueiro a da percussão e João Morais, claro, conduz o trio na viola campaniça


Em 2016, depois de décadas dedicado à agitação do punk e do rock, começaste a dialogar com um instrumento tradicional, a viola campaniça. Porquê esse desvio?

Já ouvia coisas muito variadas quando estava mais ligado ao punk e ao rock. Nos últimos anos, por exemplo, aproximei-me da chamada world music (música do mundo). Há uma particularidade nesse género que sempre achei interessante. É o facto de os sons terem uma origem geográfica. A origem do músico ou da banda é algo que, por norma, importa neste género musical, seja um grupo da Índia, do Bangladesh ou do Mali. Sempre achei que o pormenor geográfico era algo muito interessante. O que faz com que esses artistas tenham um som particular é precisamente os instrumentos de raiz tradicional que utilizam. Tocam os instrumentos dos seus países de origem. A dada altura, também quis que a minha música tivesse a minha geografia e a única forma que encontrei para que isso acontecesse foi agarrar-me a um instrumento de raiz tradicional

Sobre a experiência com a guitarra portuguesa antes de mergulhar no universo da viola campaniça:
 

 

Como é que te cruzaste com a viola campaniça?

Foi com muita alegria que percebi que tinha muito por onde escolher. Em Portugal há muita variedade de cordofones tradicionais, mas quando me cruzei com a viola campaniça decidi avançar para esta aventura com esse instrumento.

Esse encontro com a viola campaniça foi em Beja, certo?

Sim. Foi num concerto do Paulo Colaço, um tocador de viola campaniça que costuma atuar sozinho. Quando o vi em palco gostei muito do som e da forma como abordou o instrumento. Fiquei tão curioso com o que vi que fiz questão de ir logo conversar com ele para saber mais sobre a viola campaniça. Quis saber tudo. Que instrumento era, onde podia encontrá-lo. Não sabia nada e quis saber tudo. O Paulo teve a gentileza e a generosidade de passar-me muita informação e ainda me explicou como é que podia encontrar aquele tipo de instrumento em Lisboa.
 

 

O que é que ganhaste com o desvio do punk/rock para um som mais virado para a identidade musical portuguesa? 

Já houve várias pessoas que me disseram que este som soa a uma cultura ainda mais antiga. Soa a algo antes de Portugal ser Portugal. Lembra a nossa herança islâmica, árabe e mediterrânica. Este instrumento já existia de uma outra forma antes de lhe imprimirmos a nossa identidade. Em relação ao punk/rock, acho que mantenho o estado de espírito crítico e autocrítico que é muito característico do género. Sou crítico em relação ao que vejo, ao que oiço, ao que leio e acho que foi precisamente isso que me levou a querer um som mais personalizado, mais afastado do chamado mainstream. O rock, apesar de tudo, é um género mainstream. Não é o género mais mainstream de todos, mas acaba por estar em todo o lado, espalhado pelo mundo inteiro. Queria que a minha música tivesse uma impressão digital e que estivesse mais relacionada com quem sou do ponto de vista geográfico. O punk/rock também me deu a postura de nunca baixar os braços, de continuar a ser curioso e de observar o que me rodeia com um olhar crítico. Acho que é por isso que fiz esta viragem no meu caminho. Está tudo interligado. 

Sentes-te mais tu?

Já ando na música há 33 anos. Sinto que o que fiz até hoje foi uma caminhada à procura de algo. Tenho a sensação que agora, com este projeto e com a viola campaniça, encontrei realmente alguma coisa. Abriu-se um novo caminho criativo. Sinto que estou neste projeto com a sensação de estar no sítio certo, a fazer o que quero fazer. Já não estou nessa procura constante para chegar a algum lado. Acho que todos nós, a dada altura, temos de encontrar a nossa praia. Não descansamos enquanto não encontramos a semente que vai florescer. Até isso acontecer parece que andamos só a semear, a tentar perceber o que é que brota. Sempre senti que andava a semear. Agora sinto que está a crescer algo que vale a pena regar. É deixar florescer.

Agora, o novo disco. O "Subterrâneos" brotou da experiência pandémica. Preencheste os dias de confinamento ou semiconfinamento a criar...

Sim. Subjacente a isso está o facto de a viola e a guitarra funcionarem como uma espécie de medicação. Os instrumentos são os meus controladores de ansiedade, de stress e de bem-estar. Tento estar equilibrado, não quero estar demasiado eufórico nem demasiado depressivo, e consigo esse controlo com a música. A música sempre teve influência no meu estado de espírito. Quando começaram a surgir as notícias sobre pandemia e, consequentemente, quando soube que os meus concertos tinham sido cancelados pensei logo em pegar na viola e começar a trabalhar em material novo. O próprio título e o conceito do disco relacionam-se com esta experiência. O álbum é uma espécie de mergulho ao interior de cada um, aos subterrâneos de cada um. Cada um de nós teve de fazer o seu percurso interno, uma vez que não podíamos estar com os outros. Era apenas connosco que podíamos de estar. Acho que isso obrigou-nos a escavar até às entranhas dos nossos pensamentos.
 

 

O que é que foste encontrando nessa "escavação" interna que depois resultou neste álbum?

Fazendo música, em termos humanos, sabia que não ia encontrar o pior de mim. A música tem a capacidade de regular a minha descida ou subida nessa tal "escavação" pessoal. Sabia, à partida, que ia estar sempre equilibrado. Musicalmente, como compositor e músico, fiquei surpreendido com a minha capacidade de resposta. Consegui fazer este disco com dois grandes músicos [Carlos Barretto e José Salgueiro], o que fez com que metesse a fasquia bem alta e tivesse de fazer o exercício de tentar superar-me. Falo não só a nível técnico mas também com as narrativas que quis contar. 

Sobre a experiência de trabalhar em trio, com Carlos Barretto (contrabaixo) e José Salgueiro (percussão):


Que narrativas são essas?

Tenho ido buscar inspiração ao que leio. É algo que já faço há alguns anos. São esses mergulhos literários que me inspiram para a criação. O conceito do "Subterrâneos" acaba por não ser apenas um mergulho no nosso interior mas também nas leituras que fiz. Cada uma dessas leituras deu azo a uma música e cada música tem o seu ambiente próprio. Desenvolvo a narrativa musical a partir daquilo que vou lendo. Também trouxe poesia para este disco. O primeiro single, o 'Electro Santa', resultou de uma experiência que tive em 2019, quando fui assistir a leituras do poeta Artur Rockzane. Na altura fiquei muito interessado em saber mais sobre esse escritor e em conhecer o trabalho poético que desenvolveu. Fiquei com alguns textos na memória e quando comecei a compor foi para lá que fui. Tento que a viola faça a banda sonora do que está escrito nesses textos. 
 



Sobre a faixa 'Chuva Oblíqua', inspirada em Fernando Pessoa:


Sobre a faixa 'Trinca Fortes', a alcunha de Luís de Camões:


Estou muito orgulhoso deste disco. Acho que ficou impecável. Consegui ter ao meu lado os músicos ideais para o álbum. O técnico de estúdio teve os ouvidos e a sensibilidade ideais para que tudo ficasse a soar bem. Não tenho nenhum tema preferido, mas há uma música, 'O Capitão é o Mar', um tema está ligado a um poema do poeta catalão Jesus Lizano, que tem a ver com a ideia de o homem conseguir ou não dominar a natureza. A pandemia veio demonstrar que não. Veio lembrar que somos fracos e, de certa forma, somos fáceis de aniquilar se a natureza assim o entender. Esta pandemia provou mais uma vez a nossa fragilidade. O poema diz que o capitão é o mar.É o mar que manda. O mar pode engolir um barco de um momento para o outro. É um tema muito forte. Acho que até vai servir para abrir os concertos que aí vêm.

Como é que vais levar este disco para o palco?

Acho que maio vai ser um mês em grande. Tenho quatro concertos marcados. Há sempre a possibilidade de haver alterações, mas por enquanto estão confirmados. Vou tocar no "Soam as Guitarras", no qual já queria participar mesmo antes da pandemia. É um evento que tem tudo a ver com o que faço. Depois do "Soam as Guitarras" ainda tenho uma data em Almada. Vamos tocar em trio para podermos apresentar em pleno este disco. A ideia será levar para o palco o "Subterrâneos" na íntegra, mas também vou adicionar ao alinhamento algumas canções do passado. Vou revisitar os dois discos que fiz antes deste.

Sobre os convidados dos concertos:

 

Sobre a abertura das salas de espetáculo no próximo dia 19 de abril:
 

 


Datas dos próximos concertos:

6 de maio - Auditório Mateus d' Aranda, Évora - Festival Soam as Guitarras
7 de maio - Auditório Charlot, Setúbal - Festival Soam as Guitarras
15 de maio - Auditório Ruy de Carvalho, Carnaxide - Festival Soam as Guitarras
23 de maio - Almada
 
 

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