Ouça a Smooth FM em qualquer lado.
Faça o download da App.
01 outubro 2021
17:14
Gonçalo Palma

Sensible Soccers: "queremos tratar o Manoel de Oliveira como um parceiro da criação"

Sensible Soccers: "queremos tratar o Manoel de Oliveira como um parceiro da criação"
Vera Marmelo
Álbum "Manoel" sai nesta sexta-feira. A música inspira-se nos filmes de Manoel de Oliveira, "Douro, Faina Fluvial" e "O Pintor e a Cidade".

Os vila-condenses Sensible Soccers moram atualmente na grande tela do Porto de Manoel de Oliveira (1908-2015). Estão a cumprir um ciclo ao vivo de alguns cineconcertos, tocando em palco músicas compostas pelo trio para os filmes "Douro, Faina Fluvial" (de 1931) e "O Pintor e a Cidade" (de 1956). E nesta sexta-feira, lançam o seu quarto álbum, "Manoel", com música inspirada nesses dois filmes fulcrais em toda a história do cinema português, que têm o Porto como cenário.

Um dos três cabecilhas dos Sensible Soccers, André Simão (ao centro na foto em cima), explica-nos toda esta empreitada cinéfila. Manoel Oliveira vive também na dianteira da música portuguesa.

Foram vocês que procuraram os filmes de Manoel de Oliveira ou foram os filmes que foram ter convosco?
Este projeto nasceu de uma conversa, quando falávamos de uma banda sonora que fizemos em tempos sobre "O Homem da Câmara de Filmar" do Dziga Vertov [documentário mudo de 1929, do cinema soviético] e da relação que tinha com o filme português "Douro, Faina Fluvial" do Manoel de Oliveira. Achámos que seria interessante partirmos para a banda sonora do filme. Essa ideia surgiu algures em 2019, ficou a marinar e a certa altura começámos a pensar fazer algo mais seriamente desse género. Fomos preenchendo o projeto com outros contornos, nomeadamente a ideia de pegar noutro filme de Manoel de Oliveira, "O Pintor e a Cidade", por serem ambos filmes que falam sobre o Porto e que contam a história da vida urbana da cidade. São completamente diferentes, têm 25 anos de diferença entre eles. Um deles é um Porto de trabalho, filmado na Ribeira, de pescadores, da indústria. E o segundo é um Porto de pessoal na rua com malas, a irem para o trabalho. É um Porto de serviços, muito mais airoso e burguês. Surgiu a ideia de os juntar e de os propor ao Criatório, que é um programa de apoio à criação artística de projetos que sejam feitos no Porto. Nós achámos que esta ideia poderia ter algum enquadramento. A partir daí, a ideia foi-se desenvolvendo. Nós fomos ter com os filmes, mas também foi o impacto que tinham sobre nós, que fez com que o projeto ganhasse asas.  

Foi um desafio estimulante fazer música do século XXI para imagens tão antigas e até comoventes do Porto?
É muito interessante pensar que se está a fazer uma banda sonora para um filme cujo o realizador já não pode validar as soluções que propomos. Uma banda sonora que é feita com instrumentos que tão pouco existiam, nem sequer imaginados, quando o filme foi feito. No caso do "Douro, Faina Fluvial", é uma banda sonora com muitos sintetizadores. É interessante pensar que é um tempo contra o outro, não é só uma linguagem contra a outra. É um tempo que está claramente em confronto com outro. E por outro lado, é um exercício para se tentar perceber até que ponto aquelas imagens, quando completadas com a música, se transformam numa coisa universal. Não é muito importante se é feita em 1931, se é feita agora. É o desafio de tornar esse objeto numa soma das duas partes universal e atual. Tem muito a ver com a nossa abordagem à música. Trabalhamos muito com a nostalgia e com essa ideia de memória. E como é que as coisas que são de outro tempo são possíveis de trazer para um tempo atual e futuro. É um desafio que tem a nossa cara e tomou muito facilmente conta de nós quando pegámos neste projeto.  

Os dois filmes são diferentes e de épocas diferentes: o "Douro, Faina Fluvial" e "O Pintor e a Cidade". Isso tornou as duas metades do álbum bastante distintas?
Para responder a essa questão, tenho que fazer um ponto prévio: tínhamos como objetivo no início do projeto, e que, julgo, foi conseguido, a ideia de fazer com que a banda sonora dos dois filmes, que daria origem a um espetáculo e ao álbum fossem duas entidades relativamente autónomas. Pensámos inicialmente numa metodologia que permitisse esse resultado final. Basicamente, o que fizemos foi compor vendo os filmes. Quase todas as composições foram feitas a ver o filme e a interpretar os seus sinais e os seus tempos e ritmos. Quando tínhamos o esqueleto da banda sonora gizado, tirámos as músicas dos filmes e desenvolvemo-las sem pensar nos filmes, para fazer o álbum. Alguns temas evoluíram em direções que não estão expressas na banda sonora mas estão no álbum. Algumas ideias da banda sonora que estão apontadas ou só sugeridas deram origem a temas que não se ouvem na banda sonora mas que estão no álbum. O contrário acontece porque uma vez que o álbum estava feito, pegámos nestas músicas que foram construídas para o álbum e voltámos ao filme e ao esqueleto que tínhamos deixado montado para completar algumas partes, com as sugestões que o álbum abriu e mantendo outras que no álbum nem sequer existiam. Há pelo menos dois temas do álbum que não se ouvem na banda sonora e também há três ou quatro [músicas] da banda sonora que não se ouvem no álbum. Portanto, são duas entidades que queríamos que fossem relativamente autónomas. Evidentemente que não são completamente autónomas, porque muitas das músicas do disco vêm de uma interferência muito forte que o filme teve na sua construção. Há uma relativa autonomia entre as duas coisas, o que não invalida, como tu perguntavas, que haja temas que refletem "O Pintor e a Cidade", porque são mais solares e urbanos e têm mais a ver com o passo lento do quotidiano numa cidade de serviços mais airosa. E há outros temas que refletem uma certa densidade e melancolia e uma espécie de peso de uma outra cidade, de uma faina dura e de trabalho, de indústria, de guindastes, de peixe e aquela sujidade mais do início do século. Isso pode ouvir-se nas músicas do disco, apesar da ordem das faixas não corresponder à cronologia que é apresentada nos filmes. Elas estão alinhadas no álbum muito mais em função das suas características específicas do que em função da banda sonora.    

É uma grande responsabilidade a de darem uma nova vida àqueles filmes?
Sentimos, porque não são dois filmes quaisquer. É o autor mais aclamado dos cineastas portugueses. É uma obra mantida num certo sacrário. Ainda não há muitas experiências à volta da obra do Manoel de Oliveira. Era um território que nos causou uma ansiedade natural e que nos fez acusar o peso da responsabilidade, e mais ainda quando o projeto começa a ganhar forma e começámos a estabelecer contactos com a Casa Manoel de Oliveira e a conhecer melhor a obra dele. Tivemos bastantes conversas com o António Preto, que é o diretor da Casa Manoel de Oliveira, e o Ricardo Lisboa, que trabalha também na Casa Manoel de Oliveira. Essas conversas, incluindo com o filho do Manoel de Oliveira, o Manuel Casimiro - que é o zelador da obra do pai - só nos fizeram sentir o peso da responsabilidade. Este processo fez-nos sentir que estávamos num território que era importante e que nos lançava uma grande responsabilidade. Basta dizer que "O Pintor e a Cidade" é o primeiro filme português a cores. O "Douro, Faina Fluvial" é um filme absolutamente seminal do cinema português. Fomos sentido que estávamos num processo em que a parada estava muito alta. Inspirámo-nos na postura do Manoel de Oliveira, que fomos conhecendo melhor, que falava muito em atrevimento, que o artista tinha que arriscar, tinha que "pôr o pé em ramo verde". Sentimo-nos animados pelo espírito de Manoel de Oliveira, dessacralizando a sua obra. A ideia de chamar "Manoel" tanto ao disco, como ao projeto, tem a ver com esta ideia de tratar o Manoel de Oliveira por tu, de o tirar do altar e trata-lo como um parceiro da criação, sem medo do legado tão reconhecido que é o dele.            

O que é que te atrai mais no Porto dos anos 30 e dos anos 50 e que o Manoel de Oliveira tão bem filma?
Tanto no caso de um filme, como no outro, o Porto, mais do que o tema do filme, é um pretexto para o filme. O modo como o Manoel de Oliveira queria filmar aos 22 anos, quando faz o "Douro, Faina Fluvial", encontrou naquele cenário um mote certo. Ele precisava de movimento, dos barcos, das ondas do mar, dos guindastes. Talvez não seja um filme sobre o Porto, é mais sobre a maneira como ele queria filmar o Porto. O mesmo acontece n'"O Pintor e a Cidade", que é um filme que faz contra o "Douro, Faina Fluvial", que tem uma montagem muito ágil, nervosa e rápida. Enquanto que "O Pintor e a Cidade" já começa a introduzir aquela fluidez, aquela lentidão, aquela contemplação, que é típica dos filmes de Manoel de Oliveira. Ele assume que é um filme feito contra o "Douro, Faina Fluvial". Volta ao mesmo mote que é a cidade do Porto. O que lhe parece interessar não é tanto o retrato da cidade, mas mais a forma como a cidade é retratada. Isso é muito bonito, porque se estamos a ver duas cidades completamente diferentes, separadas por 25 anos, ainda para mais uma é filmada a preto-e-branco e outra a cores. Na verdade, o que estamos a ver é o olhar dele e a forma como o olhar dele mudou.     

Há outros filmes que gostariam um dia de musicar?
Talvez, acho que sim. Até hoje, não tivemos muitas conversas sobre que outros projetos podemos fazer nesta área. A importância deste projeto é tão grande que ficámos bastante absorvidos neste processo. Este precedente que abrimos com o Manoel pode fazer escola no nosso trajeto, não sei. Nós os três somos muito próximos do cinema, consumimos bastantes filmes. Da mesma forma que numa conversa sobre o "Douro, Faina Fluvial" acabou por determinar um ano do nosso trajeto e o nosso quarto disco, além de que ficará vivo um espetáculo sempre que for requisitado, é bem possível que outra coisa futura possa voltar a acontecer. 

Há mais espetáculos que planeiam apresentar, assentes nos filmes de Manoel de Oliveira?
No próximo dia 16 de outubro, vamos participar na abertura do Close-up de Vila Nova de Famalicão. Depois em novembro, atuamos em Braga. Há mais três ou quatro [espetáculos] que ainda não estão anunciados. O cineconcerto do "Manoel" vai ter uma vida muito ativa no próximo semestre. 

2022 é o ano normal por que anseiam, de volta aos concertos e festivais e essas coisas boas todas?
Esperemos que sim. Este reinício de atividade é bastante auspicioso. Atuámos agora no Tremor, nos Açores, em que já se consegue vislumbrar um festival a funcionar com regras praticamente anteriores às da pandemia na forma como se dá o usufruto dos concertos. O "Manoel" foi apresentado para uma plateia esgotada, com 75% da lotação. Julgo que é possível estar bastante otimista sobre o que se vai passar em 2022 e espero que, por todas as razões, que este augúrio venha manifestar-se daqui para sempre.  

Mais Notícias