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27 novembro 2021
10:09
Silvia Mendes

Rui Veloso recebido em Lisboa com bons amigos e uma demorada salva de palmas

Rui Veloso recebido em Lisboa com bons amigos e uma demorada salva de palmas
Rúben Viegas (arquivo)
Concerto no Campo Pequeno que celebrou os 40 anos de carreira do veterano. Hoje há mais.

Eram 9 da noite quando o público lisboeta começou a acomodar-se, com calma e ordem, nos lugares marcados, no Campo Pequeno. A sala, que ficou acolchoada de gente num instante, aguardava Rui Veloso e as estimadas guitarras que o músico escolheu dedilhar para a ocasião: a celebração de 40 anos de carreira. A festa devia ter sido feita um ano antes, mas as tropelias da pandemia determinaram que assim não fosse. Da coleção de guitarras, de porte invejável, Rui Veloso levou três - cada uma com o seu propósito, todas elas uma extensão da sua paixão.  

A noite foi de festa e de sing along. O Campo Pequeno - verticalmente iluminado com o espírito natalício do lado de fora - encheu (e aqueceu) lá dentro para homenagear quatro décadas ao som das canções do homem de sorriso gingão e com uma vida cheia de histórias na algibeira.

Rui, jovial mas particularmente nostálgico, lembrou o início de tudo: a atração pelo blues, a exploração do género na cave dos pais e a reverência pelos grandes que admira. E lembrou os amigos. Mais que isso, levou uma mão-cheia de amigalhaços para o palco: Miguel Araújo, Dany Silva, Paulo Flores, Manecas Costa, Maro e, claro, a banda que o acompanha e que, ao longo do concerto, foi-se multiplicando

Um aplauso em massa deu as boas vindas ao músico que, assim que chegou ao palco, meteu a guitarra acústica nos braços e um sorriso nos lábios que, poucos segundos depois, deram ritmo à harmónica que segurava nos ombros. "Quando tocava blues na casa dos meus pais não imaginava que um dia fosse tocar para vocês", disse Rui no primeiro momento de interação com a plateia. 'Esta Mulher é a Minha Ruína', do disco "Fora de Moda" (1982), encetou o alinhamento com o inevitável blues, resgatado da tal cave da casa dos pais - a génese de tudo para o músico. 'Ai Quem Me Dera a Mim Rolar Contigo Num Palheiro' - do seminal álbum de estreia, "Ar de Rock", seguiu-lhe o rasto, com Rui Veloso alinhado ao lado de mais dois comparsas nas cordas.

Importa agora introduzir uma nota histórica: "Ar de Rock" - o disco de estreia da carreira que se celebrou ontem - agitou o país no início da década de 80, ainda nos primeiros anos de gestão da liberdade, quando se sacudia, freneticamente, o pó de um Portugal pouco arejado. Foi entre bobines empilhadas na tal cave, a pureza do tal blues a esticar-se nas noites longas de criação e o dedilhar promissor na guitarra, como que para lhe apanhar o jeito com distinção, que Rui Veloso fermentou a vontade de criar canções, na altura ainda na casa dos vinte. O desejo agigantou-se e deu corpo ao disco que impulsionou o boom do rock português - ficando timbrado com um selo histórico. 

Esse tal disco, "Ar de Rock", esteve então representado no alinhamento do concerto que, acima de tudo, o celebrava, mas Rui Veloso tinha mais uma série de canções na manga - temas de outras andanças discográficas que distribuiu por mais de duas horas de espetáculo. Contámos 27 temas. "Trouxeram almofadinhas? É que isto vai demorar", avisou a dada altura. O público riu-se. Almofadinhas ninguém levou, mas certamente que quem estava na sala levou todo o tempo do mundo para celebrar com o nortenho de criação. 



'Já Não há Canções de Amor' antecedeu o regresso a "Ar de Rock". O som da harmónica (instrumento que Rui Veloso começou a tocar aos imberbes seis anos) serviu de tapete para mais uma faixa do inaugural disco de estreia. Ouviu-se, claro, o elegante e bucólico 'Sei de Uma Camponesa' já com o elenco de nove músicos em palco: Rui Veloso, Zé Nabo, Rúben Alves, Carlos Miguel Antunes, Alexandre Manaia, João Ferreira, Paulo Ramos, Manuela Oliveira e Orlanda Vasconcelos.

'Saiu Para a Rua' voltou a convocar o público para ajudar nos coros e 'Bairro do Oriente' soltou-se a seguir para levá-lo a passear até à dita cave onde o rock n' roll (e todas as possibilidades do género) borbulhavam ao ritmo da mudança. Rui Veloso chamou Miguel Araújo para o ajudar na demanda mais psicadélica, que expôs as proezas de Zé Nabo no baixo e de Alexandre Manaia na guitarra. Araújo cantou como se o tema lhe pertencesse, é certo, mas a canção que se seguiu pertencia-lhe mesmo. 'Anda Comigo Ver os Aviões' (dos Azeitonas) embalou a sala lisboeta tão bem apinhada de boas vozes. 

O Campo Pequeno ouviu depois 'O Prometido é Devido', 'Primeiro Beijo (que começou a capela, apenas com as três vozes dos coros) e 'Guadiana' - uma "homenagem de um homem do norte ao Alentejo". Quando o público percebeu que vinha aí 'Não Há Estrelas no Céu' prontamente afinou as gargantas. As luzes dos telemóveis multiplicaram-se na arena, formando, de improviso, um céu estrelado que, ironicamente, contrariou a cantoria. "Há quanto tempo não saiam de casa?", perguntou o músico de humor e guitarra bem afinados. "Ericei-me todo", confidenciou.   
 
Antes de entregar a voz ao tema 'Um Trolha d' Areosa', Rui Veloso saudou os muitos amigos que estavam na sala e destacou dois: António Ramalho Eanes, antigo Presidente da República, e a esposa que estavam na fila da frente. Mas havia mais companheiros para ajudar à festa e até vindos de outro continente. Paulo Flores e Manecas Costa subiram ao palco para partilhar com todos o ritmo acalorado de dois países irmãos: Angola e Guiné-Bissau. "É um privilégio participar nesta festa e perceber o carinho que têm por este homem", disse Paulo Flores. "É uma radiografia aos vossos corações".

Foi precisamente o angolano Paulo Flores quem começou a cantar 'Porto Sentido', entregando depois o verso a Rui Veloso e a todos os que estavam na sala. 'Porto Côvo', 'Não Me Esqueci de Ti', 'Beirã' e 'Lado Lunar' vieram a seguir. A balada 'Jura' foi cantada a meias com a doce Maro que encheu a arena de simplicidade e ternura. "Isto está a correr bem", disse Rui Veloso quase em jeito de balanço da noite. "São vocês que estão a enviar vibrações positivas. Mas só consigo ver os vossos olhinhos", brincou. 


'Serpente no Jardim' (um pedido especial da filha Joana), 'Sayago Blues' e 'Em Busca de Um Visual' (novamente com Miguel Araújo) ficaram para o quase final da noite e espoletaram reflexões de última hora: "o blues é que me levou a tocar guitarra. Não sei bem porquê. Talvez seja por ter uma certa negritude cá dentro", disse Rui Veloso que se atirou, sem demoras, ao frenético 'Ó Clotilde'. A dinâmica manteve-se. Houve festa de metais e cordas em 'Chico Fininho' - o clássico obrigatório que antecedeu o encore.

O cabo verdiano Dany Silva, amigo de longa data de Rui Veloso, chegou no final para cantar 'Lua Nha Testemunha' e 'Sodade', de Cesária Évora, que estendeu o momento quente de ode à morna. 
 
O fim foi, claro, com 'A Paixão (Segundo Nicolau da Viola)'. Não houve ali nenhuma alma que não tivesse cantado esta. Rui Veloso, a banda, convidados e público: todos cantaram ali (e não no Rivoli) ao som da mesma canção. O concerto terminou com uma demorada salva de palmas e com todos de pé, em sinal de agradecimento e muito respeito.
 
Hoje Rui Veloso volta à sala lisboeta para mais uma noite de festa.

   




 

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