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04 fevereiro 2022
08:58
Gonçalo Palma

José Cid: "tenho mais canções censuradas que o Zeca Afonso"

José Cid: "tenho mais canções censuradas que o Zeca Afonso"
FACEBOOK DE JOSÉ CID
Músico celebra hoje 80 anos. Lendário, histórico e versátil como poucos, José Cid recorda a sua vida em entrevista à nossa rádio.

José Cid é a partir de hoje um homem com 80 anos. Apesar do seu longo passado musical de mais de 60 anos, que inclui o pionerismo no rock nacional, José Cid é um músico ativo, sempre com a cabeça no futuro próximo ou no que fez recentemente. Mas desta vez, falar com José Cid foi começar a conversa nos anos 40, quando ainda não havia rock & roll.

Confirmas este dado biográfico: nasceste a 4 de fevereiro de 1942, na Chamusca?
Exatamente, em plena II Guerra Mundial.

Qual é a tua memória mais antiga?
As minhas irmãs a brincarem comigo, como se eu fosse um bonequito, um brinquedo, no jardim. As minhas irmãs tinham mais dez anos que eu. É das memórias mais antigas que eu tenho.

Como é que era Portugal nos anos 40?
Para mim, na Chamusca, os anos 40 eram as brincadeiras no jardim. Eu brincava com os miúdos da rua e não com os "meninos finos" da terra. Brincávamos às escondidas, ao agarra & foge. Com seis anos, em 1948, veio um miúdo francês, o Gérard, filho de pessoas da Segunda Grande Guerra. Era mais uma companhia minha. Esteve mais de dois anos comigo, o que faz com que eu fale fluentemente francês. Em 1949-50 fui “exilado” para o colégio de jesuítas das Caldas [Colégio das Caldinhas], em Santo Tirso, a 300 quilómetros da Chamusca. Foi aí que comecei a ganhar os santos corais todos. Todos os anos eu ganhava o 1º prémio do canto coral do colégio e era o pior a matemática. 

 

Como é que surge a tua paixão pelo rock & roll?
Isso já foi em Coimbra, em 1956-57, quando estava a estudar no liceu. Depois de almoço, reuníamo-nos no colégio, junto ao piano. Havia lá uns acordeões. Com uns tachos e panelas, tocava com uns amiguitos do colégio. Havia um mais velho que nós dois anos que nos desafiou a tocar nas noites de Coimbra, nas festas universitárias. E aí fomos nós, como Babies, e tocámos aquilo que ensaiávamos no colégio, depois de almoço: [versões] de Chuck Berry, Elvis Presley, Paul Anka, essas coisas dos anos 50 que marcaram muito.   

Lembras-te da primeira vez em que ouviste rock & roll?
Sim, havia uma loja em Coimbra, a Loja dos Vidros, onde comprava discos de rock & roll.

Eras fã de Elvis, de Chuck Berry, de Buddy Holly e dessa gente toda?
Dessa gente toda. E eu cantava-os com a maior das facilidades. 

Gostaste de viver em Coimbra nessa altura?
Foram tempos muito interessantes e enriquecedores. Diverti-me à grande em Coimbra. Foi nessa altura que conheci o Adriano Correia de Oliveira. O Zeca [Afonso], nunca o vi em Coimbra. Enquanto eu estava a tocar com o [Conjunto] Orfeão, eu via facilmente o Adriano sempre que dançava com as universitárias, porque ele tinha 1,90m. Fizemos uma grande amizade. Como os meus pais não me deixavam cantar em Coimbra, eu saltava pela janela do quarto, que era um rés do chão, e ia para a noite de Coimbra. E voltava às três/quatro da manhã pela mesma janela, e ninguém topava. Em Coimbra, passei do grupo dos Babies para vocalista do grupo de jazz do Orfeão, onde já havia músicos mais evoluídos como o José Niza, o Proença de Carvalho [que se tornou um famoso advogado] no contrabaixo. Houve uma aprendizagem muito grande, em especial da bossa nova, que chega entretanto a Portugal. E nós somos os primeiríssimos a tocar bossa nova em Portugal. Para mim, foi muito útil, porque havia uma linguagem jazzística em português em que era possível compor e cantar. Percebi que era possível uma abordagem mais jazzística em Portugal, que é exatamente com a bossa nova, de que sou o primeiríssimo cantor.


 
Que mais figuras de vulto via nessa Coimbra dos anos 50 e 60, além do Adriano Correia de Oliveira?
Para mim, a referência era o José Niza, que era um homem de um patamar intelectual muito elevado. Era mais velho do que eu e tínhamos uma grande cumplicidade musical. Os outros músicos que trabalhavam comigo também. O Dr. Rui Ressurreição, que era um pianista extraordinário, o Joaquim Caixeiro, que ainda é vivo e ainda no outro dia fiz uma jam e transmiti-lhe no Facebook, o Daniel Proença de Carvalho, que era um baixista muito seguro e ainda hoje me encontro com ele com frequência, em casa dele, onde vai também o João Gil e o Rui Veloso. 

Cruzavas-te nas ruas de Coimbra com os Paredes, o pai Artur ou o filho Carlos?
Não. Mais tarde, quando vim para Lisboa, comecei a tocar com o Fernando Alvim - eu no acordeão e ele na viola. Só um ano depois é que o Fernando Alvim passa a tocar com o Carlos Paredes. 

Gostaste da mudança para Lisboa em 1965?
Gostei muito. Eu andei quatro anos [como estudante universitário] em Coimbra e só fiz duas cadeiras em Direito, o que é top no Guiness. É meia cadeira por ano. 

É o que dá fazer noitadas.
Exatamente: noitadas e desporto. Eu fazia muito desporto. Fazia atletismo na Académica, jogava ténis, ténis de mesa, fazia ciclismo. Quando me mudei para Lisboa, fui para o Instituto Nacional de Educação Física. Adorei o ambiente, era educação física o que eu queria seguir. Quase que acabei o curso. Ainda hoje tenho muitos amigos do curso de educação física. Juntamo-nos com alguma frequência. Ainda hoje somos muito amigos.

Qual era a tua especialidade no atletismo?
Eu não era bom em nada. Fazia todas as modalidades em atletismo mas não era bom em nada. Eu fazia 13,95m no triplo salto. E no resto, não era bom em nada. Eu era relativamente rápido, mas havia pessoas mais rápidas do que eu, como, olha, o Pedro Barroso. O cantor Pedro Barroso foi campeão nacional dos 100 metros. Fazia 10,4 segundos, quando ele era magrinho. Era uma bomba a correr 100 metros. Batia-se com os nomes internacionais que vinham a Portugal. Era naturalmente rápido. Ele fazia 10,4 e eu fazia 10,9 segundos, portanto eu ficava a quatro ou cinco metros dele. Eu só era bom no triplo salto, com quase 14 metros.

É um bom registo, não?
Eh pá, é um bom registo quando a [Patrícia] Mamona está manca.

Nessa altura, já eras fã de Beatles. Onde é que compravas ou arranjavas os discos dos Beatles? 
Nós ouvíamos tudo o que passava na rádio pirata. Eu gravava da rádio para um gravador de cassetes. Os meus amigos traziam discos dos Beatles. Quando fui a Londres, comprei inclusivamente T-Rex, quando ainda não eram T-Rex, mas sim os Tyrannosaurus Rex [a banda de Marc Bolan]. Daí, a influência nalguns temas de [Quarteto] 1111 underground que estão ainda por revelar. Existe um lado underground no Quarteto 1111, como o 'Viagem', 'Monstros Sagrados'. Os 1111 eram underground sem necessidade de drogas.

 

Esses temas mais underground foram gravados logo no início do Quarteto 1111, ou já com a máquina em andamento?
No início, no final dos anos 60 e princípio dos anos 70. Depois, com a chegada do Tozé Brito em 1971, escrevemos em parceria, comigo a incentivá-lo a compor em português, porque ele vinha de um grupo do Porto, os Pop Five Music Incorporated, que só cantava em inglês. Resultou bem porque o Tozé revelou-se um belo compositor. A nossa amizade ficou para sempre.  

Como é que se deu a formação do Quarteto 1111?
Como eu estava no Instituto [Nacional] de Educação Física, era sempre eu que tocava piano nas aulas de dança desportiva. Uma vez, pus-me a cantar e um colega meu, o João Silveira, disse-me: "eh pá, o meu irmão tem uma banda e anda à procura de um tipo que cante. Não queres lá aparecer?". Fui a casa dele, onde havia uma garagem. Nessa garagem, estava o Conjunto Mistério, que era conhecido em Portugal mas só tocava instrumentais. Fiz o teste e eles disseram-me: é mesmo isto que nós precisamos. Integrei o Conjunto Mistério durante dois ou três meses, até que decidimos mudar tudo. O guitarrista solista do Conjunto Mistério tocava bem, o Luís Waddington, mas confrontou-me muito: ou era ele na banda, ou era eu. E a banda não teve hesitação: era eu. Fiquei eu e o Luís Waddington saiu. O Luís Waddington foi para o Algarve dirigir o Casino Vilamoura. Teve um relacionamento com uma cantora inglesa, cujo filho é o Jamiroquai, que é um dos meus preferidos artistas ingleses. É um geniozinho.

Criou-se rapidamente uma boa química entre vocês no Quarteto 1111, certo?
Completamente! Ainda hoje existe. No ano passado, morreu o António Moniz Pereira e tivemos um grande desgosto.  

Com um som psicadélico, foste à história pegar na Inês de Castro, no D. Sebastião, ou fizeste um tema cuja letra é um poema de um fidalgo real do século XVI, falamos da canção 'Partindo-se'. Gostavas desse choque de tempos, entre o som de hoje e uma narrativa de um outro tempo?
O nosso lado histórico não tem nada a ver com o psicadélico. O D. Sebastião, a Balada para D. Inês ou alguma coisa que eu tenha gravado do Gil Vicente - como este tema que eu gravei com o Tozé [Brito], 'Todo o Mundo e Ninguém,' em que o Jay Z pegou - não tem nada de psicadélico. Psicadélico era o José Cid a escrever originais que davam um álbum psicadélico. Eu ganhei o Grande Prémio de Tóquio à frente do Elton [John], da Simone brasileira e de uma série de nomes mundiais, mas não me sentia bem na Valentim de Carvalho. Eu dava-me muito bem com duas pessoas na Valentim de Carvalho, uma delas o Mário Martins. Eu era o miúdo chato que veio desestabilizar os Valentim de Carvalho, que só viam a Amália. Eu senti esse peso. Fui ter com um amigo meu, que era meu fã e que ainda hoje me adora, o Arnaldo Trindade [editor da histórica Orfeu], que foi o grande protetor do Zeca, do Adriano, do Fausto e do Vitorino, com quem tenho um relacionamento excelente.   

O Arnaldo Trindade apostou logo em ti?
Logo! Ele só estava à espera que eu lhe ligasse e lhe dissesse: "saí da Valentim de Carvalho e estou a trabalhar consigo". Passado um mês, eu já tinha duas músicas fora. Sempre me protegeu e incentivou. Sempre foi uma pessoa extraordinária para mim. O grande Arnaldo Trindade ainda hoje é vivo, é poeta. É ele o autor do poema do meu último álbum de rock sinfónico ["Vozes do Além", de 2021], do único single desse disco, 'Vou-te Amar para Lá da Morte'. A nossa amizade é quase canina. Eu adoro o Arnaldo e ele adora a minha família. É uma pessoa extraordinária.  

Sentiram logo reconhecimento público, quando saiu o single 'A Lenda de El-Rei D. Sebastião'?
O tema é um bocadinho seletivo. Choca muito as mentalidades mais conservadoras da época. Isto só avançou porque passou no [programa de rádio] "Em Órbita" e tornou-se um bocadinho viral. Mas logo o 1111 disse: "alto lá, não somos da situação, não gostamos deste sistema político". E isso fez logo com que metade do país mais conservador nos virasse as costas. Muitas músicas [do Quarteto 1111] foram censuradas pelo regime, pela PIDE, o que dificultou muito as nossas carreiras. Eu só não estive preso porque não estava ligado ao Partido Comunista. Se eu estivesse inscrito no Partido Comunista, eu já há muito teria sido preso. Eu tenho mais canções censuradas que o Zeca.  

 

Gravaram o álbum de estreia homónimo, "Quarteto 1111" (de 1970), com a certeza de que iam ser censurados?
Muito provavelmente, mas isso não impedia que fizéssemos a nossa obra, e de assumir as nossas posições políticas e poéticas. Não era a censura a razão para nos encolhermos e não assumir aquilo que queríamos dizer. Não pensávamos que fosse tão depressa. O álbum só esteve uma semana nas bancas. Eu tinha a perceção da perseguição do sistema político da altura sobre quem não fosse politicamente correto. Tínhamos consciência de que o álbum poderia ser censurado, mas não tão depressa. Pouco tempo depois, veio uma circular do SNI [Secretariado Nacional de Informação], avisando que se continuassem a cantar contra o regime, poderiam fechar as editoras. Eu e o Adriano Correia de Oliveira assumimos por escrito nas editoras que nos responsabilizávamos pela nossa obra, ilibando as editoras onde trabalhávamos. Eram tempos muito complicados, mas em que não podíamos mostrar medo ao regime. Tanto assim que três anos depois, o regime caiu de podre. 

Nesse ano de 1971, voltaste a enfrentar o regime, no início da tua carreira a solo, com temas de intervenção como 'Olá Vampiro Bom' e 'Camarada'. Tiveste muitos problemas com a polícia nessa altura?
Tive a ameaça de boicote à minha carreira, mas não tive problemas diretos com a PIDE. O regime salazarista e marcelista perseguia mais os cantores inscritos no Partido Comunista. Para eles, o papão comunista era mais complicado. Era dali que eles achavam que vinha o perigo. Não me inscrevi no Partido Comunista, nem em partido nenhum. Nem sou republicano. Mas também não sou anti-republicano. É engraçado que dez anos depois tenham aparecido os Heróis do Mar, que vieram numa linha dos 1111 e também numa linha de intervenção. Mesmo os não-republicanos como eu ficaram satisfeitos com o 25 de Abril. Eu era um grande fã do arquiteto Ribeiro Telles, o nº1 do PPM [Partido Popular Monárquico]. O PPM perdeu essas características fantásticas que o Ribeiro Telles trouxe, que tinham a ver com a arquitetura paisagística, com a ecologia, com programação do país em termos agrícolas. Foi muita pena o país não ter cumprido esse desígnio.

O Tozé Brito integrou-se bem no Quarteto 1111?
Ele era bastante mais novo mas integrou-se muito bem. Ele acabou por polir a ideia de cantar em português e resultou muito bem. 

Foi já com o Tozé Brito no Quarteto 1111 que foram ao Festival de Vilar de Mouros, em 1971. Encontraste uma nação livre dentro de um país amordaçado?
Não, nesse festival, só pudemos cantar em inglês. A única coisa que cantámos em português foi a 'A Lenda de El-Rei D. Sebastião', mas numa versão um bocadinho diferente. A nossa digressão em Angola, em 74, foi toda em inglês. Havia o problema da censura, que era inspiradora. Usávamos metáforas que se tornavam poéticas. 

Sentia-se a presença da polícia no Festival de Vilar de Mouros?
Sim, claro que lá estavam. Mas passou tudo muito despercebido. Mas a grande censura que houve foi no festival que organizei, apoiada pela Junta de Turismo do Estoril. Organizámos um festival nos Salesianos, com bandas rock portuguesas, e ainda com o Zeca, com o Adriano, e com uma banda estrangeira. Mas a censura pegou fogo ao pinhal onde íamos fazer o festival e saiu nas notícias internacionais. Foi a primeira vez que foi filmada em Portugal uma carga policial sobre a juventude. Essas imagens foram transmitidas na televisão de outros países. 

Esse festival foi em que ano?
Em 1972. O palco era lá em cima, o público estava por ali abaixo, numa encosta, no meio do pinhal. Quase tudo malta nova. Eles pegaram fogo à parte de trás do pinhal e depois fizeram uma carga sobre os jovens que foi por ali fora, até à Marginal. Não proibiram o festival, mas pegaram fogo ao pinhal. 

Sentiste-te em perigo nessa situação?
Eu não apanhei a carga. Como tivemos o cuidado de trazer os nossos instrumentos nuns carrinhos com rodas, a fugir ao fogo. Isso demorou mais de uma hora, até chegar cá abaixo, com as aparelhagens. Tinha havido pancada da forte, mas quando chegámos lá abaixo, as coisas já estavam mais calmas. Houve carga até sobre pessoas que estavam a tomar o café nas arcadas do Estoril.  

Emprestaram o vosso equipamento ao Elton John em Vilar de Mouros.
O Júlio Isidro foi buscá-lo ao aeroporto. Quando o Elton John chega a Vilar de Mouros e era a atuação deles, a aparelhagem que havia em Vilar de Mouros era ridícula. Eram umas campânulas de feira. A única banda que tinha tido o cuidado de levar a sua aparelhagem foi o Quarteto 1111. Não era nada de especial. Púnhamos um microfone à frente dessa aparelhagem e mandávamos para a aparelhagem geral do recinto, só para espalhar um pouco o som do palco. Funcionou bem. Toda a gente nos ouviu. 
O Elton John estava numa situação muito deprimente, sem aparelhagem. Para eles, aquilo era a Idade Média, porque em Inglaterra já havia bons PA. Eles pediram ao dr. Barge, que era o organizador, se era possível alugarem a nossa aparelhagem. Ele veio falar comigo e com o Tozé e nós dissemos-lhe: "nós não alugamos nada, temos todo o prazer, podem usar a nossa aparelhagem". O mais engraçado de tudo é que um de nós, já não sei bem quem, roubou o microfone em que o Elton John cantou, que era um Electro-Voice, que não havia em Portugal. Ainda hoje tenho esse Electro-Voice no meu estúdio, escrito assim: "microfone roubado em Vilar de Mouros, em 1971, ao Elton John". Foi uma forma de fazermos pagar o aluguer.    
 

 

Eles ficaram de boca aberta porque tínhamos o nosso reportório todo cortadinho. O primeiro álbum dos 1111, alguns singles e por aí fora. Abrimos a nossa atuação com uma versão de um tema da Joni Mitchell, que era vocalmente impensável para o Elton John, já nessa altura. Dois músicos da sua banda estavam sentados no palco, de boca aberta a olhar para mim. 

Como é o público reagiu ao vosso concerto?
O público queria ouvir rock e assim aconteceu.      

Como é que era o ambiente do Festival de Vilar de Mouros?
Era o máximo. Nós éramos a perfeita imagem dos hippies da época: grandes barbas, óculos redondos, colares. 

Chegaram a pernoitar lá. Tomaste parte do espírito do festival, certo?
Dormimos numa tenda, tomámos banho no rio. Foi muito engraçado. São coisas irrepetíveis. 

Como é que o país rural reagiu a essa tribo de hippies?
Reagem como hoje no Bons Sons [festival de música portuguesa na aldeia de Cem Soldos, colada a Tomar]. O pessoal de Cem Soldos reage bem. Ninguém vai lá para fazer distúrbios e as pessoas querem é curtir a música. Havia uma ervita ligeira. Os grupos eram pobrezinhos e distribuíam. Era um cigarrinho único pela banda toda, nada de grave. 

Como é que foram para o Festival de Vilar de Mouros?
Dois elementos do Quarteto 1111 tinham [Volkswagen] carochas. Fomos todos em carochas. Pusemos uma roulotte para o PA e para os instrumentos. E lá fomos, de Lisboa para Vilar de Mouros, a 80 à hora.     

O sucesso comercial com os Green Windows surpreendeu-te?
Os Green Windows são o Quarteto 1111 com as suas namoradas. Algumas delas cantavam benzinho, outras não, mas não fazia mal, porque aquilo tudo junto soava bem. Os Green Windows são vistos por um grande produtor inglês. Ouve-nos a atuar num festival em Lisboa. Entusiasmou-se de tal maneira que nos convidou para gravar em Londres. Os Green Windows são a primeira banda continental a gravar em Londres para uma marca inglesa, antes dos ABBA ganharem o Festival da Eurovisão [em 1974]. Gravámos em inglês a canção Vinte Anos, as outras foram em português. Ainda estivemos em Espanha a fazer a promoção. Mas ficou por aí, não conseguimos entrar no mercado.  

Como é que surge o teu interesse pelo rock sinfónico?
O rock sinfónico é feito de uma fusão dos músicos entre o rock progressivo e as influências do jazz. Era o meu caso. Dessas minhas influências, achei que era a altura de escrever aquilo que os músicos da minha geração faziam. Comecei por fazer "Onde, Quando, Como, Porquê, Cantamos Pessoas Vivas" [dos Quarteto 1111], com poesia do José Jorge Letria e música minha. Saiu mesmo em cima do 25 de Abril. Logo a seguir, começo a gravar "10 000 Anos Depois entre Vénus e Marte", juntando músicos de elite daquela geração. Um deles já partiu no ano passado, o [baterista e percussionista] Guilherme Inês. Mas outros estão bem vivos, como o caso do [baixista] Zé Nabo e do [guitarrista] José Moz Carrapa. Juntei-me a eles e fizemos uma banda. Nessa altura, eu saí dos 1111. Fizemos uma banda onde tocávamos Camel, King Crimson, Genesis e também músicas nossas.

 

Foste aos famigerados concertos dos Genesis no Pavilhão Dramático de Cascais, em 1975?
Fui. Foi fantástico, genial. Já projetavam coisas em ecrãs. Mesmo com condições acústicas sub-humanas, a onda foi absolutamente genial. São aquelas coisas pontuais que acontecem nas nossas vidas. Anos mais tarde, tive o privilégio de conhecer o [guitarrista] Steve Hacket e de trocar mails com ele. Encontrámo-nos no festival de rock sinfónico de Gouveia [Gouveia Art Rock]. Depois do nosso concerto de “10 000 Anos Depois entre Vénus e Marte”, bate à porta do nosso camarim o Steve Hacket, para espanto. Já era fã da banda, de me ouvir cantar e do guitarrista solista Xico Martins.  

Como é que surge a ideia para o álbum "10 000 Anos Depois entre Vénus e Marte", lançado em 1978?
Surgiu-me a ideia de fazer um álbum que o mundo recomeçasse de novo. Já nessa altura, havia muitos erros feitos pelo ser humano. Essa ideia de refazer tudo do princípio ao fim trouxe-me muitas ideias. Hoje, mais velhote, componho muito menos do que antes. Dantes, fazia uma canção quase diariamente. Mas atenção que o "10 000 Anos Depois entre Vénus e Marte" foi muito pensado, desde 1971-72. 

É um verdadeiro trabalho de equipa, não é? Todos - tu, Zé Nabo, Mike Sargeant e Ramon Galarza - participam criativamente. 
Exatamente, abri a criativadade a todos. Mais vale abrir a todos do que ficar agarrado a uma coisa só minha. Isso ajudou-me muito. O tema '10 000 Anos Depois entre Vénus e Marte' é da autoria do Zé Nabo e é lindíssimo. 

 

O Portugal democrático estava bem vivo no final dos anos 70. Tu tocavas nalguns comícios da AD [Aliança Democrática], como aconteceu na Alameda D. Afonso Henriques [em Lisboa], certo?
Estavam lá 300 mil pessoas. Cantei um tema. Cantámos vários, cada um um tema. Fui a convite do Gonçalo Ribeiro Telles [líder do PPM, um dos três partidos da coligação da AD], que era muito meu amigo e mais tarde amigo da minha mulher [Gabriela Carrascalão]. Foi um convite curioso. Estive ao lado do Sá Carneiro.

Achaste importante empenhares-te politicamente nessa altura?
A todos os níveis, seja de direita ou de esquerda, eu gosto de quem gosta de mim. Quando as pessoas me convidam, é porque gostam de mim. As pessoas convidam-me e eu digo que sim. Não me ponho cá com coisas. Se o Partido Comunista me convidar para cantar na Festa do Avante, eu digo-lhes que sim. E eu vou cantar os meus temas censurados no Antigo Regime e faço uma homenagem ao Zeca e outra ao Adriano. Musicalmente, não me fecho em guetos. A arte paira por cima. Sou uma mente aberta. Agora, se o Chega me convidar para participar, eu não vou. Com o 25 de Abril, finalmente pudemos passar a ter as nossas opiniões, sem ter que seguir quem nos quisesse impor a sua vontade. Nós passámos a poder votar. Votando, estamos a definir as nossas posições em relação a essas coisas todas. Eu quis o 25 de Abril para poder votar e para poder definir a minha posição política. É essa a minha forma e não a de impor as minhas ideias a outros. Cada adulto pensa por si e faz como quiser.  

A tua participação no Festival da Canção de 1980, com 'Um Grande, Grande Amor', foi a mais memorável das muitas em que estiveste?
Eu tenho seis segundos lugares no Festival da Canção. Depois do 'Um Grande, Grande Amor', tive dois segundos lugares, com o 'Morrer de Amor por Ti' e 'O Poeta, o Amor, o Músico'. E tive ainda uma vitória com uma canção que a Inês Santos levou lá fora.
Quando ganhei o Festival da Canção, em 1980, já tinha saído da Valentim de Carvalho e estava com o Arnaldo Trindade, que era muito amigo do Sá Carneiro. Eu sabia que as démarches para que eu ganhasse o Festival da Canção eram mais do que muitas. De qualquer maneira, se calhar, ganhava à mesma. 'Um Grande, Grande Amor' era de longe a canção mais festivaleira daquele ano e era mesmo para ganhar. Houve o boicote da televisão, sendo a canção favorita nesse ano na Eurovisão. Em 400 jornalistas, 376 votaram na minha canção como a favorita. A televisão entrou em pânico, "nós não temos dinheiro para fazer o festival da Eurovisão no próximo ano. Se o Cid ganha, não temos orquestra, nem auditório". Houve umas chamadas telefónicas para que as televisões não votassem em mim. Votando em mim, a televisão não teria possibilidade de organizar. Só comecei a ser pontuado a partir da décima votação. Ainda cheguei ao sétimo lugar. Foi engraçado.  

 

Tens tocado para grandes multidões. Tens ideia qual foi o concerto em que tiveste mais público?
As Festas do Mar, em Cascais, e a Expofacic, em Cantanhede, onde atuei para audiências acima de 60 mil espectadores. Mas toco em média para audiências acima dos 20 mil espectadores. Não sou nada um cantor que começa a tremer quando vê uma grande multidão. Sei que tenho uma grande banda por trás. Se estiver a tocar durante mais de duas horas, não me atrapalho nada. 

Consegues dizer qual foi o teu concerto que mais gostaste de dar?
Gostei muito de fazer o último Campo Pequeno, a convite do Álvaro Covões [líder da promotora ao vivo Everything Is New], em novembro do ano passado. Foi extraordinário. Foram quase três horas de música ao vivo, comigo a cantar. Era o oitavo concerto que estava a dar no Campo Pequeno e acho que foi o melhor. Das seis mil pessoas que leva a sala, estavam cinco mil. Apesar do medo da covid-19, estavam lá cinco mil pessoas e era um público extraordinário. Fiz um concerto com alta dinâmica e ótimo som. 

Em que é que mais te orgulhas?
Aos 80 anos, continuo inspiradíssimo, em grande forma, e não sei quando isto acabará. Será o que Deus quiser, mas para já estou a aguentar duas horas de concerto, estou a cantar em grande forma. Faço homenagens durante os concertos à Amália e ao Zeca. Canto as músicas mais conhecidas que o público está à espera. Estou bem de saúde, mas a vacinação da covid deitou-me muito abaixo. Com a segunda dose, era com preguiça que fazia 150 metros. Mas já estou a recuperar.  

 

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