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28 abril 2022
07:00
Gonçalo Palma

IndieLisboa regressa hoje à normalidade

IndieLisboa regressa hoje à normalidade
DR - documentário Cesária Évora (cortesia IndieLisboa)
Documentário sobre Cesária Évora é uma das muitas obras em exibição no festival de cinema.

A 19ª edição do festival de cinema IndieLisboa inicia-se hoje e decorre até ao dia 8 de maio, assinalando o regresso à normalidade, com a lotação máxima das salas a 100% e a dispensa de obrigatoriedade do uso de máscara dentro dos espaços interiores.

O ecletismo continua a ser a palavra de ordem no IndieLisboa, num jogo de anca entre a novidade e a ida ao baú histórico (recuperação de filmes perdidos, restauros de cópias, invocações de obras de artistas mais obscuros), e numa variedade de formatos que, por vezes, se interligam: a ficção, o cinema documental, a animação e o cinema experimental. Em 12 secções e em mais de 170 filmes (a contar com as curtas-metrangens), há margem para essa cinefilia versátil.

Para melhor enquadrar a programação deste ano, ouvimos Carlos Ramos, um dos diretores do IndieLisboa. 

Como é que se consegue resumir uma edição tão rica como o IndieLisboa deste ano?
Não se consegue. Com uma equipa pequena, consegue-se fazer muita coisa. Coisas importantes: voltámos às datas originais por que ansiávamos há algum tempo, no final de abril e início de maio. Isso permite logo fazer duas coisas muito importantes para nós: regressar o conceito de escolas para o IndieJúnior, que é uma das missões do festival, com a formação de públicos e o desenvolvimento da parte estética do cinema. O IndieJúnior faz 18 anos, atinge a sua maioridade. Isso permite-nos trabalhar com as escolas de todo o país, nomeadamente da Área Metropolitana de Lisboa. 
Por outro lado, trazemos de volta o Indie By Night. O festival vive das sessões de cinema, mas há um contexto de sensação de que há algo a acontecer e o Indie By Night é muito importante para isso e para promover o contacto entre os convidados, o público e a equipa. Este ano, vamos ter muito mais convidados do que costumamos ter, por causa do fim da pandemia. Vamos receber mais pessoas para apresentarem filmes e conversar com o público no final das sessões. 
Em termos de longas-metragens, é a maior competição nacional de sempre. Algo que nos deixa bastante orgulhosos. Conseguimos montar uma competição nacional de nove filmes, o que nunca tínhamos conseguido. 
A Retrospetiva e o Foco Silvestre são dois eixos diferenciados da programação em relação à competição. A Retrospetiva vai para a Doris Wishman, que já morreu e que foi uma das mais prolíficas realizadoras do cinema norte-americano. Nos anos 60, começou a filmar num mundo muito masculino, a combater os códigos de censura vigentes da altura e com um tipo de cinema muito transgressor, ousado e imaginativo, através da sexploitation. Ela beneficiou um pouco com o fim do código de censura nos anos 60. Houve uma proliferação de filmes da sexploitation. Ela foi uma das realizadoras que fazia os seus próprios argumentos. Fez 25 filmes, dos quais vamos mostrar dez, porque muitos ainda estão a ser restaurados, outros estão perdidos. 
A Foco Silvestre está dedicada à distribuidora de arquivo de cinema experimental, a Light Cone, que faz 40 anos. O arquivo tem milhares de filmes, dos quais estivemos a fazer um trabalho de curadoria, com quatro programas de cinema experimental, de alguns realizadores que já tínhamos passado, outros novos. 
Quer a Retrospetiva, que a Foco [Silvestre] serão passadas integralmente na Cinemateca Portuguesa.          

 

Ao dedicarem a retrospetiva à cineasta Doris Wishman, há um pudor que querem derrubar na cinefilia? 
Temos mostrado sempre filmes que combatem qualquer tipo de pudor, censura ou autocracia. Esta realizadora é muito específica no contexto e é bastante desconhecida em Portugal. Essa é uma das missões da Retrospetiva: dar ao público português cineastas desconhecidos, com pouca visibilidade, mas que nós gostamos muito. O contexto sexual e transgressor é um extra, que passa para outros filmes que temos no Silvestre. Há uma linha transgressora neste festival. A Doris Wishman parece-nos uma escolha acertada para fazermos uma retrospetiva.   

 

Salvo qualquer imprecisão, contei 96 filmes de ficção e mais de 80 documentários na programação desta edição. Há um equilíbrio muito grande entre ambos os formatos. O documentário continua em crescimento no IndieLisboa?
Não empregaria a palavra "crescimento". É uma das fundações do festival a equidade entre os vários formatos cinematográficos. Não são só ficções, documentários e animação, há também filmes experimentais, daí aquele foco de que estava a falar da Light Cone. São cerca de 40 filmes experimentais. Essa [divisão por] géneros para nós fazem cada vez menos sentido. Desses números que contaste, muitas dessas ficções são obras híbridas que vão a vários géneros e a vários formatos. Essas balizas ainda existem, mas são filmes principalmente. Muitos deles trabalham com vários géneros. Por exemplo, o "1970" do Thomas Wolski é uma animação mas que é um documentário, mas que é uma ficção. São coisas essencialmente híbridas. Sendo um festival generalista, não somos um festival só de documentário ou de ficção. Somos um festival que acolhe todos os géneros de cinema.   

 

"O Jovem Cunhal" de João Botelho é uma das relíquias desta edição?
Nas sessões especiais, mostramos muitos filmes do último ano com temas de interesse geral e sensível e que vão a várias personagens da vida portuguesa. O João Botelho aparece em dose dupla este ano, com "Um Filme em Forma de Assim", sobre o Alexandre O' Neil, e o filme sobre o Cunhal e os anos do seu processo inicial. Portanto, não acompanha a vida toda do Cunhal. É uma justa homenagem. Independentemente do quadrante político em que se situa, é uma das personagens históricas portuguesas e teve um papel fundamental na nossa saída da ditadura. Também mostramos um filme sobre a Maria Lamas, que foi uma das mulheres pioneiras no ativismo, que escreveu um livro esquecido, "As Mulheres no Meu País", que voltou a estar na espuma dos dias, sobre as mulheres e a sua condição em tempos de ditadura. E passamos também um filme sobre a Sita Valles ["SITA - A Vida e o Tempo de Sita Valles", de Margarida Cardoso], que tem também uma história muito misteriosa. Ninguém sabe muito bem o que lhe aconteceu. Ela era uma jovem anarquista e comunista, lutou pelo anticolonialismo nas colónias africanas portuguesas e acabou por não se saber muito bem o que lhe aconteceu. É muito importante que as pessoas conheçam estas histórias. 

 

Temos na programação a cópia restaurada de "The Last Stage" da Wanda Jakubowska ou o documentário que estava perdido sobre a Guerra Civil Russa a seguir à I Guerra Mundial, pelo Dziga Vertov, "The History of the Civil War". Há também o documentário novo sobre a II Guerra Mundial como o "Viagem ao Sol", sobre refugiados austríacos. Estamos a falar de uma oportuna coincidência?
É uma coincidência, porque a programação já estava fechada antes da guerra ter começado. Estamos a falar de filmes que foram vistos ao longo do último ano e que já tinham sido escolhidos há bastante tempo. O festival não é político, mas é feito de convicções. A Rússia é uma questão com que nos vamos debater ao longo do festival. Para nós, esse é um assunto debatido internamente. O IndieLisboa sempre foi um espaço que lutou contra qualquer tipo de discriminação ou de autoritarismo, mesmo pelas retrospetivas que fazemos. Estou a lembrar-me da Sarah Maldoror, que lutou contra a colonização. Sempre passámos esses filmes. Faz sentido que o festival continue a ser porto seguro para mostrar filmes que partilham o nosso ideal de tolerância e de liberdade, e a maioria dos filmes russos que passamos é anti-sistema e anti-poder. Estamos a falar de realizadores que estão a ser presos neste momento na Rússia - como a Ekaterina Selenkina, de quem vamos mostrar o "Detours" - ou que tiveram que fugir do país. Decidimos não retirar nenhum filme que tivesse sido escolhido. Estamos a falar de filmes que não fazem nenhuma apologia pela guerra ou pelo colonialismo russo na Ucrânia.      

 

A secção do IndieMusic pode ser vista como um equilíbrio entre retratos de artistas de peso (Cesária Évora, Patti Smith, Sinead O'Connor, Thelonious Monk) e abordagens mais singulares (italo-disco, experimentalismo eletrónico das mulheres, cena musical da comunidade turca na Alemanha)?
Sim, essa é uma preocupação: não tornar o IndieMusic só de nomes conhecidos, mas também não trazer só nomes do underground e desconhecidos. [Queremos] um equilíbrio entre documentários de músicos e movimentos com que as pessoas se identificam e espaço para descobertas. Nos prémios, as escolhas do júri têm recaído para esses filmes de descoberta. Vamos ter filmes de gente que toda a gente conhece, estou a lembrar-me da "Cesária Évora", do "Meet Me in the Bathroom", que acompanha a emergência do movimento nova-iorquino depois de 2000 de bandas como os Strokes, os Interpol, os LCD Soundsystem, os TV on the Radio e os Yeah Yeah Yeahs, mas depois temos filmes sobre a comunidade turca imigrante na Alemanha ["Love, Deutschmarks and Death" de Cem Kaya]. E é esse equilíbrio que temos conseguido e que tem sido bem recebido. Há espaço para as pessoas verem filmes sobre pessoas que já conhecem e que querem saber mais um pouco sobre a sua história ou ouvir a sua música. Mas depois, nada me dá mais prazer do que ver pessoas que vão ao IndieMusic que querem descobrir músicos de que nunca ouviram falar e que a partir dali vão investigar e querer saber mais sobre eles.  

 

Para informações completas sobre o programa, os locais e os bilhetes, podem clicar neste link do site oficial do IndieLisboa.

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