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15 setembro 2022
07:00
Gonçalo Palma

Viagem à galáxia sensorial de David Bowie

Viagem à galáxia sensorial de David Bowie
DR - documentário Moonage Daydream (Universal Pictures)
O documentário "Moonage Daydream" estreia-se hoje e é uma experiência Imax, sob os comandos de Brett Morgen.

"Moonage Daydream", o primeiro documentário oficial e autorizado sobre o legado de David Bowie, é uma viagem - vivenciada em experiência Imax - aos seus 54 anos de carreira (bem vistas as coisas, aos seus 69 anos de vida). O filme é uma viagem para dentro e para fora de si mesmo, onde se sente o seu amor à vida, do micro ao cosmos, do íntimo do artista ao espaço conquistado por este astro-rocker de outro mundo. "Moonage Daydream" funciona como um videoclipe com mais de duas horas, numa deriva frenética  entre imagens dos vários passados de David Bowie, como uma colagem de milhões de cacos. 

"Moonage Daydream" é o nome deste filme realizado, escrito e montado pelo cineasta Brett Morgen, que já se tinha destacado através de outros documentários de música, como "Crossfire Hurricane", sobre os Rolling Stones, ou "Montage of Heck", centrado no líder dos Nirvana, Kurt Cobain. O fã Brett Morgen, que ouvia David Bowie desde os 13 anos de idade, teve acesso autorizado e indiscriminado ao vasto arquivo de imagens do seu ídolo. 

A dimensão gigantesca do arquivo de imagens coleccionado por David Bowie levou Brett Morgen para um trabalho que demorou cinco anos. Só para começar a organizar um guião, Brett Morgen demorou um ano. A meio do seu trabalho, teve um ataque cardíaco, que mudaria a perspetiva sobre a sua vida de workaholic.

Brett Morgen já sabia há muito que David Bowie nunca quis um documentário convencional sobre a sua obra. E cumpriu o seu desejo. Em "Moonage Daydream", é o homenageado morto que narra - a partir do seu arquivo - e é só ele que fala. Não é só o intercalar recorrente de depoimentos bajuladores de outros sobres os artistas visados, como é norma no formato de muitos dos documentários de música. 

"Moonage Daydream" é um documentário mais sensorial que informativo. Não há grandes revelações. Fala-se do meio-irmão esquizofrénico, do passado mod de Bowie, dos pais distantes, da vivência nos subúrbios feios de Londres (para ele, uma perda de tempo), dos recortes de palavras desconexas como base de inspiração para as suas canções, ou dos quadros que pintou de berlinenses do leste que fugiram. Tudo isso, ou quase tudo isso, já se sabia. 

Mas no frenesim etéreo de "Moonage Daydream", conseguem retirar-se alguns dados factuais. Por exemplo, Bowie, saído da má vida de Los Angeles, encontrou em Brian Eno o SOS artístico, para o reenquadramento metódico de que precisava, nos anos de Berlim, na segunda metade dos anos 70. 

"Moonage Daydream" é um documentário que não vai atrás do prejuízo, apesar de ter sido iniciado e desenvolvido depois da morte do Camaleão. Antes, recupera Bowie do arquivo e dá-lhe vida, como se fosse um fantasma simpático, disponível para falar connosco. Quem melhor que David Bowie para falar sobre David Bowie?

A maturidade do cantor londrino enquanto esteta transforma-se com naturalidade numa grandeza de guia espiritual. O que vai dizendo enquanto narrador em "Moonage Daydream" é forte e luminoso. Lembra que o que conta é o quanto se vive e não a duração do que se vive. E nas entrevistas, declara-se um generalista e um observador social.

Mas o Bowie imperfeito também existe neste documentário, sobretudo aquele jovem deslumbrado, quando testava os limites do masoquismo, experimentando viver num cidade que odiava, Los Angeles, ou a beber pacotes de leite magro no estofo de trás da limusina. Imigrou depois para Berlim e para a normalidade quotidiana, deixando para trás a artificialidade da vida de estrelato. E fascinou-se pelo Extremo Oriente, onde foi só um viajante e não um residente - e são essas viagens orientais que nos dão algumas das melhores e mais curiosas imagens de Bowie, diante de templos ou em sequências intermináveis de escadas rolantes sob o olhar de outros que o reconheciam. 

Os mistérios e enigmas podem perdurar. Não é preciso desvendar mistérios mas sim aumentá-los. Isto Bowie não diz, mas sente-se em "Moonage Daydream". A noção de tempo é discutida. No passado, está o carregamento da sua auto-estima e da sua sabedoria, ambos sempre em crescendo ao longo de 54 anos de riscos musicais. Mas é no futuro que está o desconhecido e o seu entusiasmo. O futuro é o seu oxigénio. Isto Bowie também não diz, mas sente-se em "Moonage Daydream". 

Bowie releva o caos como dominante nas sociedades urbanas das últimas décadas. Há que aceitá-lo, recomenda, mas David Bowie preferiu pensá-lo. 

A sua vida é uma imensa expedição - geográfica, musical e artística. Logo, também "Moonage Daydream". Bowie esteve em quase todo o lado, cantou muita coisa diferente e experimentou várias formas de se expressar, como nas artes plásticas, envolvendo-se em instalações enquanto alma desinstalada. 

Como quis experimentar tudo, cedeu à tentação de provar o estrelato pop. Viveu o sucesso a grande escala nos anos 80, com a mola da canção 'Let's Dance', até ser sugado e bloquear naquilo a que chamou de "vácuo".  "Não se deve dar aquilo que as pessoas querem mas fazer com que elas gostem daquilo que gosto", concluiu o narrador Bowie após a sua fase mais mediática. 

Também saboreou o que tanto evitava antes: o aninhamento no amor e na vida de casal, com a mulher da sua vida, Iman. "Moonage Daydream" flutua em todos estes estados de alma, tal como no seu percurso musical camaleónico. Na sala de cinema, o fã de David Bowie corre o risco de sentir o efeito de pele de galinha quando ouvir (e ver) a crueza elétrica ao vivo dos tempos do boom do glam-rock (no início dos anos 70), a euforia dos megaconcertos nos anos 80 e a agitação do rock industrial à Nine Inch Nails (nos anos 90, num vai e vem de 'Hallo Spaceboy').  

"Moonage Daydream" abre portas para o futuro visual e arqueológico de Bowie. É possível ainda fazer documentários melhores. "Moonage Daydream" não fecha nada. E se há futuro, contem com Bowie.

 

O documentário "Moonage Daydream" merece também uma banda sonora, que vai ser lançada no mercado amanhã. O tema-título 'Moonage Daydream', 'Heroes' ou 'Sound & Vision' são algumas das muitas músicas que fazem parte desta banda sonora.

      

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