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17 março 2023
07:00
Gonçalo Palma

Hot Clube em duas Praças da Alegria imaginárias

Hot Clube em duas Praças da Alegria imaginárias
DR - cortesia promoção do Hot Clube de Portugal
Arranca hoje o festival que assinala os 75 anos da grande instituição do jazz em Portugal.

Em 1948, o sonho do melómano Luiz Villas-Boas foi tornado realidade com a criação em Lisboa de um clube de jazz, que fosse mais do que um mero palco para o género. A missão de divulgação do jazz do Hot Clube consumou-se não só num clube carismático - que foi residindo (e resistindo) junto à Praça da Alegria -, como numa orquestra e banda da casa, e uma escola que não parou de crescer.

Hoje, o novo Presidente do Conselho Diretivo do Hot Clube, Pedro Moreira, já olha para uma terceira estrutura, o museu, a ser agregado ao clube ao vivo e à escola. Quando isso acontecer, o Hot Clube de Portugal será uma casa de jazz mais completa, tal como aspira Pedro Moreira.

Antes, há outras urgências a resolver, como uma nova morada para o Hot Clube, depois do inesperado encerramento do anterior espaço, no nº 48 da Praça da Alegria. O coração do jazz quer voltar ao coração histórico de Lisboa.

Entre hoje e domingo, a alma coletiva do Hot Clube de Portugal agiganta-se, para o Festival Hot Clube 75 Anos, que acontece em dois espaços diferentes: o Teatro da Comuna e, a dois quilómetros, o Fórum Lisboa. Quem melhor que o atual Presidente do Hot Clube, Pedro Moreira, para nos apresentar o festival? Fomos ouvi-lo sobre o Hot Clube no 75º aniversário, tentando adivinhar o que poderá ser o Hot Club quando comemorar um século.

Se o desafiasse a sintetizar o programa dos festejos dos 75 anos do Hot Clube, o que diria?
Este festival pretende assinalar um momento que é super-importante na história do jazz, por todas as razões que se imaginam, por ser um clube de jazz muito singular e particular, com uma resistência e uma vida tão longa e cheia de coisas tão interessantes. Claro que também não é alheia a fase delicada que atravessa o Hot, com o fecho recente das instalações do clube na Praça da Alegria, o que reforça ainda mais a vontade de todos nós - os músicos, os sócios, o público - de se poder voltar a reunir, uma vez que estamos sem esse espaço de encontro. 
É um festival curto, com dois espaços amavelmente cedidos com a colaboração da Câmara e da EGEAC [Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural]: o Teatro da Comuna e o Fórum Lisboa. Os concertos no Teatro da Comuna vão replicar o ambiente do Hot Clube. É um ambiente de bar, tem um palco e um jardim, num espaço muito agradável, e tem aquela informalidade e proximidade de que gostamos tanto no Hot. O fantástico Fórum Lisboa, o antigo cinema Roma, é uma sala um pouco maior. Aí vão ser apresentados os grupos institucionais do Hot: ou seja, a Orquestra e também o Sexteto liderado pelo guitarrista Bruno Santos.
Para além dos concertos, há uma tarde de apresentações dos combos da escola e uma mesa redonda sobre o ensino do jazz, com o fundador da Escola, que é o Zé Eduardo, e os diretores pedagógicos a seguir ao Zé, que foram eu, o Bruno Santos e o Gonçalo Marques, que é o atual diretor pedagógico. Os concertos são de bandas que têm uma longa proximidade e de amizade com o Hot Clube, que é o Lokomotiv, do Carlos Barretto, Mário Delgado e José Salgueiro - todos eles já com uma longuíssima relação com o Hot desde os anos 80. E têm a singularidade de, enquanto grupo formado, já tem mais de 20 anos. Nós sabemos que os músicos vão passando por vários grupos e por propostas novas. É difícil manter um grupo com uma certa característica, em permanente renovação, e durar tanto tempo. Tirando mais casos extraordinários como o caso do trio de Mário Laginha, não há muitos grupos que estejam formados há tantos anos. É a abertura do festival, com um concerto fortíssimo. Depois, há um dueto lindíssimo entre o Zé Eduardo e o João Paulo Esteves da Silva, que se conhecem desde os anos 70 e inícios de 80s em atuações no Hot Clube e na própria escola também. E a seguir, um grupo um pouco mais jovem mas já com uma carreira mais estrondosa, o grupo do Nelson Cascais, que faz um projeto de homenagem ao [Charles] Mingus, que teve um enorme sucesso [Mingus Project]. Sendo que o Nelson Cascais, além de grande músico e grande compositor, tem uma particularidade, por faz parte da primeira geração formada pela escola do Hot Clube, quando o curso tinha sido reformulado para curso regular de quatro anos no início dos anos 90 - ele e o Nuno Ferreira. Todos eles têm uma longa história com o Hot, apresentam projetos incríveis e vai ser essa a ideia do festival. Além disso, vai ser complementado por jam sessions nas noites de sexta e de sábado, com aquele ambiente tão típico dos clubes de jazz, em concreto no Hot Clube.

 

Esta é a programação ideal ou a ausência do vosso espaço ao vivo torna isso impossível?
De uma forma genérica, não sei se há programações ideais. Todas as escolhas que possam ser feitas estão sempre sujeitas a uma certa subjetividade. Há uma direção artística que tentamos implementar, dentro de uma estética e consistência que nos interessa com um certo tipo de linguagem jazz. Vai ser muito bom termos estas instalações e ter contado com esta colaboração. Claro que limita não ser no nosso espaço, incluindo na duração. Se houvesse a possibilidade de ter as nossas próprias instalações, haveria mais programação complementar, talvez mais mesas redondas, ciclos de conferências e workshops. Neste momento, fez-se o que foi possível, porque o festival teve que ser redesenhado num prazo de tempo muito curto devido ao fecho [do clube ao vivo]. Ao mesmo tempo, acho que temos uma programação muito rica e espero que venha a ser ótimo. 

Em relação ao clube ao vivo, já há um espaço escolhido?
Ainda não. Houve aqui uma coincidência temporal de três eventos importantes para o Hot: o fecho inesperado do clube por razões estruturais de segurança do edifício, o processo eleitoral - porque o Hot Clube é uma associação cultural com corpos gerentes sujeitos a eleição. A direção do mandato anterior, presidida durante quase 15 anos pela Inês Cunha, fez um trabalho muito importante. A Inês tinha já informado que não iria recandidatar-se e iria cessar as suas funções na direção do Hot Clube. Isto correspondeu a um fim de ciclo no clube e na escola. Ia haver eleições dos novos corpos gerentes. Ao mesmo tempo, estávamos em preparação para o festival dos 75 anos do Hot Clube. Só recentemente entrámos em funções, estamos em contacto com a Câmara [Municipal de Lisboa]. Teria sido impossível neste curto espaço de tempo ter havido uma solução concreta. Estão a ser discutidas várias soluções. Aquilo que eu sinto é uma abertura, uma boa vontade e uma preocupação genuína por parte de todos os envolvidos, nomeadamente a Câmara, para fazer face a este problema. Tenho essa esperança e essa sensação de que em breve irá surgir uma solução.    

Essa solução passa pela proximidade com a Praça da Alegria?
Para mim, idealmente, sim, porque o Hot Clube tem uma longuíssima história com a Praça da Alegria. O Hot estava no nº 48. Parece que o destino nos persegue: há mais de dez anos, estávamos no nº 39, onde houve um problema com o edifício, onde estivemos décadas. Aliás, foi lá que começou a Escola do Hot que, como é sabido, já não está na Praça da Alegria. Poucas pessoas já saberão, mas antes do nº 39, o Hot Clube já estava na Praça da Alegria, no nº 66, desde o início dos anos 50. A Praça da Alegria não é a mesma coisa sem o Hot Clube e sem o jazz. Nós esperamos, e penso não estarem esgotadas todas as possibilidades, que o Hot fique naquela zona. Idealmente, na Praça da Alegria ou na zona. O Hot é uma casa da cultura no centro de Lisboa. É aí que pertence o Hot Clube. Dificilmente sairá do centro de Lisboa sem ver a sua característica e a sua atividade seriamente abaladas.  

Nessa idealização do futuro clube, suponho que esteja no imaginário uma cave?
Eu, pessoalmente, sempre achei que uma das marcas do Hot Clube era descer aquelas escadas. Aí tendo a concordar. Não sei se será possível, as situações ideais são uma coisa e a realidade é outra. Vamos ver. Aquela magia de entrarmos numa espécie de templo sagrado, em que sentíamos a história toda naquelas paredes. Claro que neste caso estou só a falar do nº 39, porque este anterior já não era uma cave. Acho que o Hot Clube precisa absolutamente de um pátio e de um jardim, fazem parte da sua identidade. A cave tinha um encanto muito especial. Ao descermos as escadas, estávamos transportados para um mundo muito especial, uma espécie de templo com algum mistério à mistura. A música e o jazz têm também uma grande componente de mistério. Eu gostaria que isso pudesse acontecer, não sei se isso será possível. 

 

O Hot Clube celebra 75 anos, um dia celebrará 100. Quais são os grandes desafios que se impõe ao Hot Clube de Portugal nos próximos anos?
Os desafios são vários. Há os desafios normais de uma associação cultural que luta pela afirmação da cultura e da educação, neste caso concreto, do jazz no nosso país. O jazz do nosso país teve uma transformação colossal nos últimos vinte e tal anos, através de várias outras instituições, de ensino formal e informal, onde houve um desenvolvimento extraordinário. Há que ter a noção que o jazz continua a ser um meio profissional extremamente complicado, e ainda com muito poucas oportunidades para muitos jovens de altíssima qualidade. Esse é um desafio que tem que ser partilhado por todas as pessoas deste meio, com o Hot Clube à cabeça. Temos várias ideias na manga, que devemos ter a capacidade de imaginar e sonhar e sabemos que não vai ser fácil de concretizar. Mas vamos tentar. O Hot Clube tem um lado público reconhecido mas tem um lado que ainda não está disponível para as pessoas em geral. O Hot Clube é aquele espaço que conhecemos da Praça da Alegria, um dos clubes de jazz mais antigos da Europa. Tem uma grande singularidade que faz com que seja uma associação verdadeiramente única na Europa: um clube de jazz, que é também uma orquestra de jazz, que é uma escola de jazz, que é um futuro museu do jazz, que é uma casa do jazz. Eu acho que o Hot Clube é, verdadeiramente, uma casa do jazz. A parte museológica tem que ver com o acervo e o espólio do [Luiz] Villas-Boas, mas não só. Já temos várias outras coleções também. Essa parte ainda não está disponível para o público e é essencial para a divulgação desta área, mas também para a investigação, inclusive a nível académico, no que diz respeito à história do jazz em Portugal. Não se consegue separar a história do jazz em Portugal da história do Hot Clube, como é evidente. É uma mais-valia cultural e turística da cidade de Lisboa. Como sabemos, Lisboa está numa dinâmica incrível. Mas dentro de um espaço competitivo internacional, as cidades precisam de marcar distintivas e de projetos que sejam singulares. O Hot Clube é absolutamente singular. É a hipótese de ter concertos regulares, mas com um espólio, numa casa de jazz que se possa visitar, sobre a história do jazz no nosso país. É esse o nosso desafio: voltar a ter o Hot Clube, que funcionava a uma escala muito pequena. A nossa escala é hoje maior, a escola tem neste momento 400 alunos, com uma estrutura grande de 60 professores. Tem um projeto pioneiro de iniciação à música para jovens, através do jazz. Isto tudo pertence ao mesmo espaço e à mesma casa. O meu maior desafio é juntar estas valências todas num espaço único, num campus com proximidade geográfica, que é o que não está a acontecer. A escola funciona numas instalações boas, mas em Alcantara. Tudo isto está a ser repensado.

Portanto, o ideal seria deslocalizar a escola para uma zona mais central de Lisboa.
Vamos ver. Isso são assuntos complexos, que envolvem várias dinâmicas, vários projetos e vários objetivos. Se de repente encontrarmos uma forma que sirva os objetivos dos vários envolvidos, eu penso que isso poderia acontecer. Não digo no mesmo edifício, mas pelo menos na mesma zona, para criar uma dinâmica de interação que sempre existiu no Hot, enquanto clube e escola. Um sempre alimentou o outro. Eu ainda sou do tempo em que estava na Escola do Hot Clube, no nº 39, em que as aulas acabavam e descíamos o edifício e íamos para o clube assistir aos concertos. A Orquestra do Hot não tem uma sala de ensaios atualmente. Tem que ter uma sala de ensaios e um espaço de apresentação, que também não tem. Isso condiciona o desenvolvimento artístico de toda a orquestra. E o museu está metido em caixotes, numa sala que não está aberta ao público. Temos aqui um potencial grande por desenvolver e explorar que não está ainda posto em prática.

O Hot Clube é uma instituição lisboeta ou pode ganhar uma dimensão nacional?
Isso está nos nossos planos também. Nós costumamos dizer na brincadeira que é o Hot Clube de Portugal e não o Hot Clube de Lisboa. Claro que é uma associação muito ligada a esta cidade. Nós gostariamos que isso acontecesse, aumentando a nossa rede de interações que o Hot Clube pode ter com todos os agentes culturais e, neste caso, jazzísticos, espalhados por esse país fora - que já são bastantes. Nós já temos colaborações com várias instituições, festivais e salas, mas gostariamos muito de reforçar essa rede, com uma presença mais forte no resto do país. 
 


A Orquestra do Hot Clube de Portugal está na foto em cima.

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