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29 março 2023
10:53
Gonçalo Palma

Lisboa em forma de bota (na grande tela e não só)

Lisboa em forma de bota (na grande tela e não só)
DR (cortesia Festa do Cinema Italiano)
Arranca a Festa do Cinema Italiano nesta quarta-feira, em Lisboa.

Entre hoje e dia 6 decorre mais uma edição lisboeta da Festa do Cinema Italiano, um evento que tem alargado os horizontes para lá das grandes salas escuras e que, mais uma vez, chega à mesa de refeição (através dos cinejantares), à pista de dança (em outra festa de italo-disco), aos palcos e ao espaço de exposição (com a obra fotográfica de Luigi Ghirri em destaque no Centro Cultural de Belém).

Depois, como também tem acontecido, a Festa do Cinema Italiano invade o resto do país, qual caravana de estrada. Para já, Lisboa fica mais gesticulante e tricolor, em forma de bota. Lisboa torna-se Lisbota. Os cinemas São Jorge e do El Corte Inglés são o epicentro, a que se junta a Cinemateca Portuguesa.  

O diretor e programador do festival, Stefano Savio, em entrevista, faz-nos os seguintes destaques...

É uma edição muito forte. É uma sorte ter uma boa programação cinematográfica. O cinema continua a ser o prato forte, embora o festival abranja mais outros aspetos da cultura italiana. Temos um grande convidado este ano que é o Toni Servillo, talvez o ator mais emblemático e representativo do cinema italiano dos últimos 20 anos. Lembramo-nos d'"A Grande Beleza". Está cá para apresentar um filme, "A Estranha Comédia da Vida"  [na foto em cima], de Roberto Andò [a ser exibido na sessão de encerramento, a 6 de abril], e também para representar num espetáculo teatral, As Vozes de Dante, no [Teatro] Maria Matos [a 4 de abril]. É um ponto muito alto na programação, depois de tantos anos a tentar convidá-lo a vir a Lisboa. Também o filme de abertura é muito importante, L'immensità, de Emanuele Crialese [exibido na noite de hoje no São Jorge], que esteve em competição no Festival de Veneza. É uma história auto-biográfica, um coming-of-age, e tem a Penélope Cruz como protagonista, no papel de mãe italiana nos anos 70. É um filme ótimo para abrir o festival este ano. Há outros filmes importantes, como As Oito Montanhas, sobre amizade masculina, que ganhou o Prémio do Júri do Festival de Cannes. E depois, para redescobrir um tesouro do cinema italiano, temos um documentário sobre o Sergio Leone, O Italiano Que Inventou a América, que nos conta o impacto que teve no cinema americano.  

 

Há também um ciclo sobre Elio Petri, que é um realizador mais politizado e sarcástico, ligado ao cinema impegnato.
O Elio Petri é um dos grandes mestres do cinema italiano, tal como outros que homenageámos como o Fellini, o Pasolini ou o Visconti. Talvez seja internacionalmente menos conhecido. Teve um grande impacto em Itália nos anos 60 e 70. É, como se diz em Itália, um cinema impegnato, um cinema comprometido com a realidade social e política que se estava a viver. É um cinema que retrata o seu presente e enfrenta-o. Há três ou quatro grandes filmes dele – o Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, La decima vittima, o Todo modo. Sabemos pela Cinemateca que foi um realizador pouco visto em Portugal e que, achamos, faz todo o sentido ser descoberto.

 

Temos também uma exposição sobre o fotógrafo italiano Luigi Ghirri, e o o documentário "L'Infinito. L'universo di Luigi Ghirri", realizado em 2022 por Matteo Parisini. Imagino que seja um dos pontos altos da programação.
Sim. Desde os últimos anos que temos tentado ampliar a nossa programação cultural. [Este ano] acontece não só com o espetáculo teatral do Toni Servillo, como já havia acontecido passado com exposições de outros grandes fotógrafos. Este ano elevámos a fasquia com o Luigi Ghirri, considerado um dos grandes fotógrafos italianos, e não só, do século passado. Nos últimos anos, tem havido uma grande redescoberta da sua arte em Itália. Esta é a primeira grande exposição em Portugal sobre o Ghirri, em colaboração com o Centro Cultural de Belém. Vai estar em exposição durante dois meses. É um fotógrafo com um olhar muito específico e cinematográfico, também muito ligado à arquitetura paisagística. A sua filha estará cá presente para apresentar o lindo documentário e também para acompanhar as pessoas na exposição.   

Se não houvesse esse documentário, teria havido esta exposição?
Não. Tudo começou quando procurávamos uma imagem representativa do cartaz do cinema italiano. Não utilizámos nenhuma imagem do Luigi Ghirri. Mas procurando, vimos as suas lindíssimas fotos das praias vazias italianas. Fiquei curioso sobre o seu autor e apercebi-me que em Itália havia um grande movimento de redescoberta do Ghirri e vi que havia um filme sobre ele. Tudo se juntou.

 

Não há como não reparar no biopic de Dante ["Dante", de Pupi Avati] ou no documentário sobre o Papa Francisco ["A Viagem de Papa Francisco", de Gianfranco Rosi].
O biopic sobre o Dante é um filme muito interessante. É um Dante corporal. Não é só um poeta, mas um homem que viveu o seu tempo na Idade Média. É uma história muito interessante de [Giovanni] Boccaccio, outro grande poeta italiano, que vai à procura da filha de Dante, para lhe entregar uma prenda. Através deste percurso pela Itália da Idade Média descobre os rastos do Dante. Em 2021, assinalaram-se os 700 anos da morte do Sommo Poeta, como o chamamos em Itália.
O filme "In Viaggio", ou seja, "A Viagem de Papa Francisco", é muito interessante. Passou no Festival de Veneza. O Gianfranco Rosi é o maior documentarista italiano da atualidade, já venceu vários prémios nos festivais de Berlim e de Veneza, em filmes que já foram exibidos em Portugal. ["A Viagem de Papa Francisco"] é um documentário muito interessante porque retrata a faceta internacional do Papa, sobre o seu impacto político e pessoal, quando faz uma viagem, seja para falar com os seus fiéis, seja para falar com outras igrejas. Acho que este filme se liga também à próxima vinda do Papa cá a Lisboa. É um retrato inédito do Papa.

 

Entre os vários documentários da programação, contam-se também um sobre o malogrado ator Massimo Troisi ["Laggiù qualcuno mi ama", por Mario Martone], ou a ascensão de Benito Mussolini ao poder de Itália ["Marcha sobre Roma", por Mark Cousins].
Mark Cousins é muito conhecido pelos documentários e séries televisivas muito didáticos sobre a história do cinema. Neste caso, ele vai abordar um filme sobre o período antes da subida do fascismo do Mussolini ao poder e demonstra como a imagem é usada como instrumento de propaganda e o que é que as imagens escondem. O filme extende-se a outras ditaduras, Portugal também é analisado. É um filme que retrata também o nosso presente em Itália. O filme do Mario Martone, "Laggiù qualcuno mi ama" é muito recente, estreou-se agora no Festival de Berlim. O Mario Martone é um grande realizador italiano, tem um filme que se estreou há pouco tempo nas nossas salas ["Nostalgia"], e fez uma grande homenagem ao ator Massimo Troisi, que não é tão conhecido no estrangeiro como em Itália. O Massimo Troisi é o protagonista do "Carteiro de Pablo Neruda" [de 1994], mas também da realidade do mundo de Nápoles nos anos 80. 

 

Vêem quantos filmes italianos por ano e quantos têm que deixar de fora?
Acho que estou a ver 80 a 100 filmes por ano, que é mais ou menos a produção italiana, incluindo a ficção. Há uma escolha assente na qualidade, mas também no diálogo com o público português. Há filmes que falam pela sua qualidade e há filmes que falam pela história que contam. Há filmes que, pela sua linguagem, podem ter mais apelo internacional. Há filmes que podem ser melhor entendidos, outros menos. Há uma escolha autoral, dos filmes que gostamos mais, e também uma opção pelos filmes que melhor funcionam em Portugal. É o problema das comédias, que são muitas, algumas delas inexportáveis, apesar de serem bastante divertidas. 

 

Mesmo sem poder decifrar alguns códigos locais do humor italiano, o espectador português pode perceber as tendências atuais do cinema italiano, através do vosso festival. 
Para nós é importante alguma continuidade. O primeiro elemento é o realizador. Seria interessante, para ampliar o público, ter filmes do mesmo ator. É importante insistirmos no mesmo ator. Este ano temos o Luca Marinelli e o Alessandro Borghi, que são atores fantásticos, nas "Oito Montanhas". Temos o Valerio Mastandrea em "Seca". São caras que esperamos que o nosso público comece a reconhecer. Que se tornem familiares. O nosso trabalho é também criar estes pequenos divos do cinema italiano, pelo menos dentro do nosso público. Reparo que quem segue a Festa, reconhece os mesmos atores: "ah, quero ver outro filme, que gostei dele no filme anterior". 

Podem consultar toda a programação da Festa do Cinema Italiano em Lisboa neste link. 

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