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23 abril 2024
13:00
Silvia Mendes

Marisa Liz e Júlio Pereira juntaram-se para uma versão de 'Teresa Torga', canção de José Afonso

Marisa Liz e Júlio Pereira juntaram-se para uma versão de 'Teresa Torga', canção de José Afonso
Fcaebook Oficial Marisa Liz
Teresa Salgueiro, Rui Veloso, Iolanda, Tatanka, Dino D'Santiago e Selma Uamusse cantam nos coros.

José Afonso incluiu 'Teresa Torga' no álbum "Com as Minhas Tamanquinhas", de 1976. Foi através de um notícia, publicada pelo "Diário de Lisboa" em 1975, que o músico conheceu a história de Maria Teresa Gomes Baptista, mulher que, por ser admiradora do escritor Miguel Torga, gostava de ser conhecida como Teresa Torga. 

Aconteceu a 7 de maio de 1975, pouco mais de um ano depois da Revolução dos Cravos. Atriz, fadista e divorciada, Teresa Torga, na altura com 41 anos, despiu-se numa rua de Lisboa, chamando para si os olhares de quem por ali passava e, em particular, de um fotógrafo que, de máquina fotográfica em punho, tentou captar o momento que estava a presenciar. 

Relata a notícia da época que António Capela, assim se chamava o fotógrafo, foi travado pelos populares que, indignados, qualificaram a captação de imagens de "baixeza moral". Lemos no jornal que a indignação foi tanta que o repórter de imagem acabou por abandonar o local, provavelmente cabisbaixo, sem as desejadas fotos de Teresa.

José Afonso transformou a notícia em canção e 'Teresa Torga' avolumou-se na história da sociedade portuguesa como um "hino à mulher" e um "tributo à resiliência feminina". Quase 50 anos depois, o multi-instrumentista Júlio Pereira, que colaborou com Zeca Afonso, deu-lhe um novo ciclo de vida. Marisa Liz deu-lhe a voz e manteve a substância do que 'Teresa Torga' representa. Nos coros ouvimos as vozes de nomes como Teresa Salgueiro, Rui Veloso, Ana Bacalhau, Iolanda, Tatanka, Diogo Branco, Dino D'Santiago, Selma Uamusse e Luanda Cozetti.


Conversámos com o Júlio Pereira e a Marisa Liz sobre a nova versão que, embora tenha começado a ganhar forma há mais tempo, chega na altura da celebração dos 50 anos do 25 de Abril
 
Porquê uma versão da canção 'Teresa Torga' e porquê editá-la agora?

JP: O "agora" tem mais a ver com a Marisa, mas a verdade é que o desejo de fazer um disco com a música do Zeca [Afonso] vem de há cerca de quatro, cinco anos. Estava precisamente a trabalhar nisso quando surgiu a pandemia e os subsequentes confinamentos. Fui obrigado a parar. Lembro-me que parei na semana em que ia gravar com o [António] Zambujo e o Jorge Palma. Parou tudo. Também coincidiu com um período da minha vida em que tive vários problemas de saúde, o que também me obrigou a ficar literalmente parado durante dois ou três anos. Isto tudo fez com que me afastasse do projeto, embora já tivesse começado. A canção que a Marisa canta, por exemplo, já estava definitiva. Acabou por ficar a "marinar" durante todos estes anos. Eu já tinha desistido do projeto, tanto que comecei a fazer um outro disco, o "Rasgar", que é um álbum-livro que vai sair agora em maio. Estava focado nisso até que recebi uma chamada da Marisa. A partir daí, aconteceu tudo muito rapidamente. Aconteceu ao tempo da Marisa, que é uma espécie de "trator" nestas coisas. (risos)       

E a Marisa parece ter a substância certa para dar voz a esta canção, certo?
JP: Qual terá sido a razão para ir buscá-la? (risos) E digo mais. Não conheço os processos de gravação que a Marisa teve ao longo da vida, mas sei que esta foi a canção mais difícil que cantou. Sobretudo pela sua tessitura, do mais grave ao mais agudo. A nota mais aguda e a nota mais grave que a Marisa dá neste tema estão no limite das suas possibilidades físicas. Foi difícil gravar, mas ela lá se desenrascou. (risos)      

E para ti Marisa, qual é que foi a carga emocional de cantar este tema?
ML: Comecei a conhecer esta canção mais a fundo depois de o Júlio me ter pedido para cantá-la, para interpretá-la. Foi difícil a todos os níveis, mas tive a ajuda e a direção dele. Quando pego em canções estou habituada a alterar algumas notas, mas neste caso o conceito era para que fosse mais incisivo. Tinha de respeitar ao máximo a melodia e a estrutura da canção. Apesar de isto ter sido feito há cerca de quatro anos e embora tenha gravado outros temas pelo meio, esta canção vinha-me constantemente à cabeça. O Universo falava comigo e, de repente, a 'Teresa Torga' vinha-me ao coração e à cabeça. Nesses momentos, pensava: 'tenho de falar com o Júlio, temos de fazer isto'. O tempo foi passando e, há cerca de dois meses, a lembrança da canção veio com uma força diferente. Veio com a força da necessidade de mostrar às pessoas o que o Júlio fez. E esta é uma necessidade que existe por todos os motivos e mais alguns, sendo que na sua maioria são motivos infelizes.

O peso de cantar esta canção foi gigante. Foi difícil [cantá-la] a nível técnico, a nível emocional e também por saber a razão pela qual estava a ser feita, isto tendo em conta o contexto do álbum que o Júlio estava a fazer. Foi difícil pela relação de tantos anos que o Júlio teve com o José Afonso e pelo facto de ter finalmente pegado no trabalho do Zeca e colocado a sua própria linguagem musical por cima de canções que são intemporais. É um peso gigante. E também posso dizer que sempre que canto com o Júlio fico a tremer dos cotovelos. (risos) Fico a tremer por vários motivos. Sei que tenho de pôr à prova a minha interpretação, aquilo que sei tecnicamente e a humildade para aprender e melhorar. Por outro lado, são estas as gravações das quais me orgulho mais. Nada do que é fácil perdura na memória. E depois é a própria carga emocional da história da canção. É uma história que foi contada a partir de uma notícia de jornal ["Diário de Lisboa"], o que evidencia o talento enorme que o José Afonso tinha para pegar numa notícia e transformá-la numa canção. E, ainda por cima, numa canção que acabou por se tornar num hino à mulher. 

JP: Creio que, ao longo da carreira, todos os intérpretes vão ganhando maneirismos, cada um à sua maneira. Aliás, é algo que tem a ver com a reação da própria parte física do cantor à música. Mas quando se faz uma versão tem de existir uma espécie de humildade para interpretar um papel diferente. É quando um cantor interpreta uma personagem. É o ato de um intérprete despir-se de quem é, daquilo que executa naturalmente, para aprender a ser uma personagem. A canção original está incluída no álbum "Com As Minhas Tamanquinhas", de 1976, que, levianamente, foi considerado, por alguns jornalistas da época, como o pior disco do ano. Foi numa altura em que a música portuguesa estava a morrer, as playlists das rádios estavam a mudar... 

ML: E porque muitas vezes as pessoas não querem pensar naquilo que tem de ser feito. 

JP: Eu próprio faço parte de uma "divisão" de músicos que só passam na rádio pública. Certos músicos, curiosamente os que sempre fizeram a música que de facto tem a ver connosco, deixaram de passar nos programas com maior audiência das rádios. E esse disco do Zeca saiu numa altura em que isso já se sentia.            

Em relação à canção propriamente dita, o Zeca pegou então na notícia de uma mulher que se despiu na rua, trabalhou-a à sua maneira e transformou-a num hino à mulher. É interessante perceber que, passados 50 anos, ainda temos de falar sobre estas coisas. A mulher ainda não atingiu a liberdade que devia ter atingido. E já devia ter atingido essa liberdade há bem mais do que 50 anos. Eu estou atento às questões de género, sobretudo ao trabalho que é feito no laboratório da [Universidade] Nova, e vou sabendo que os índices de violência doméstica em Portugal continuam a ser assustadores. Como é que isto é possível? Como é que isto acontece numa altura em que celebramos 50 anos do 25 de Abril? É por isso que as canções, as peças de teatro e todas as expressões de arte são bem-vindas e muito necessárias. É importante que as pessoas não se esqueçam que isto existe. 


E também para chegar às gerações mais novas... 
ML: Sim. Hoje em dia, e talvez por causa das redes sociais, se tiveres uma música que provoque algum hype, talvez seja mais fácil passar nas rádios. Isso não acontecia há alguns anos. Ser músico era quase uma loucura. Nem era visto como uma profissão. Os músicos eram músicos porque precisavam mesmo de usar a arte como forma de expressão. E estou a falar de músicos, mas aplica-se à arte em geral. É quando tens um pensamento que foge ao que é suposto um povo executar. Acho que é daí que vem a liberdade. Acho que a ideia de as mulheres terem um papel submisso está a levantar-se mais uma vez. A educação é importante. Acho que temos de ser ensinados a pensar e a sentir. Não vale a pena pensarmos em remoinho. Não vamos chegar a lado nenhum. A educação faz com que pensemos. E quando pensamos evoluímos. O problema é que essa evolução assusta muita gente. Assusta o controlo e assusta o poder. É muito mais fácil meterem-nos numa caixa. Principalmente as mulheres.

Há pessoas que acham que quanto menos pessoas houver a pensar melhor. É por isso que a arte tem um papel indispensável. A cultura tem um papel indispensável. É nesse "planeta" que temos a liberdade de sentir sem nos julgarem. Ouvir música, olhar para uma pintura ou ler um livro é algo que podemos fazer sozinhos. Ninguém nos julga nesses momentos. Isso começa a mudar quando a arte passa a ser para todos e quando damos um murro na mesa em relação à realidade que estamos a viver. E a arte sempre teve o papel de documentar os tempos. Por isso é que temos tantos documentos que nos contam como é que as coisas aconteceram. A arte leva-nos para esses momentos. E isso só é possível porque no passado houve alguém que, com as suas emoções, expressou o que estava a ver. A arte será sempre necessária. É necessária para a parte boa, isto é, para nos divertirmos, para celebrarmos quem somos e as emoções que temos, mas também para nos fazer pensar.


A arte é necessária para que tenhamos mais empatia e vontade de evoluir. É lamentável termos chegado a um ponto em que não só houve muita coisa que não andou para a frente, como estamos cada vez mais retrógrados e a levar as coisas para um lugar aflitivo e assustador. Acontece em matéria de violência doméstica, em ambiente laboral ou nas guerras, em que as mulheres e as crianças são as mais afetadas. E falo da liberdade do ser humano, independentemente de ser mulher ou homem. Apesar de não querer generalizar, também acredito que os homens ainda desempenham o papel que lhes foi incutido e ensinado. O papel de não sentir, de não pensar e de não esforçar as emoções. Ainda têm de ter um papel agressivo em contraponto com a mulher que tem de ser delicada. A verdade é que somos seres individuais. Cada um de nós sente as coisas de uma forma muito própria, mas é-nos incutido a ter um comportamento comum consoante o género. Acho que estamos a ir por um caminho que não é feliz. É o caminho do julgamento. Julgamo-nos e julgamos os outros. Isso afasta-nos da liberdade. É imperativo fazermos alguma coisa. Estou genuinamente feliz por ver colegas nossos a virar a música que fazem para a realidade, para aquilo que está a acontecer. Ainda há pouco tempo a Ana Bacalhau lançou a canção 'Por Nos Darem Tanto', feita pela A Garota Não, por exemplo. Ou o facto de estarmos a lançar esta versão da 'Teresa Torga'. Está a acontecer nos 50 anos do 25 de Abril, mas podia ter sido no ano passado ou no próximo ano. É urgente falar sobre as coisas.  

JP: O resultado das últimas eleições está a proporcionar isso. Sinto que agora há mais motivação. Há uma vontade natural por parte das pessoas para se virarem para a realidade. Quase como se nos últimos anos estivéssemos andado a pairar. Agora as pessoas começam a pensar que têm de fazer alguma coisa. 

ML: E há pessoas que pensam exatamente o mesmo mas do lado oposto, do lado anti-liberdade. Temos de falar sobre as coisas. Não podemos parar. Se houve algo que o 25 de Abril nos ensinou, é que o medo não os faz sair do buraco. O medo mantém-nos lá. Por outro lado, existe uma outra palavra, da qual gosto muito, que é a palavra "coragem". O que fazemos com ambas é o que nos define enquanto estamos neste planeta


Qual é o maior inimigo da liberdade?

ML: É o medo. O medo e a ausência da educação. A educação e a cultura são essenciais para podermos pensar pela própria cabeça.   

JP: Eu acho que é a apatia. É a apatia que fomos adquirindo ao longo dos últimos 50 anos. Talvez o resultado das últimas eleições tenha sido fruto disso. As pessoas estão despreocupadas com o que está a acontecer. Deixaram de acreditar nos sucessivos governos e muitas já nem querem votar. Essa apatia e esse desprendimento da realidade resultaram no que vimos nas últimas eleições. Por outro lado, há muita gente, que estava de algum modo parada, a motivar-se. 

O que diria José Afonso se aqui estivesse?
Quem me dera que ele estivesse aqui, a falar connosco sobre estes assuntos. Quem me dera. Foi sempre um fulano fantástico. Era uma pessoa frágil mas só porque sentia tudo. Sentia sobretudo os outros. A forma como o povo vivia tocava-o muito. Foi a pessoa que conheci que mais sentia a forma como o povo vivia. Era uma pessoa muito doce, muito sentida com os outros. Ficava mesmo preocupado. E muitas das suas canções são reflexo disso mesmo. São reflexo da sensibilidade que tinha. 

Marisa, como é que achas que viverias o 25 de Abril?
Provavelmente estaria lá à frente. (risos) Estaria lá à frente e sempre por amor. Pelas razões de todos e de todas. Não iria ficar parada. Todos nós estamos em movimento. Por mais que a gente não veja, está tudo em movimento. Está tudo a girar. As folhas continuam a crescer, as nuvens continuam a andar, o sol continua a girar. Parar é simplesmente não aproveitar o que estamos aqui a fazer. Temos de andar para algum lado. Acho que ultimamente não sabemos muito bem para onde. Temos de pensar sobre isso em conjunto. 

JP: Não interessa a época em que vivemos. Os problemas continuam. Lutar pela democracia é provavelmente a maior utopia de todas. Eu tenho noção que vou morrer sem ver o resultado que desejava em algumas lutas. Mas há que viver essa utopia. Temos de gastar a nossa energia da melhor maneira possível, temos de ser felizes o máximo que pudermos e temos de lutar pelo que acreditamos. O prazer da vida é viver tudo isso.

ML: É isso. É não parar. 

JP: Nem mais.   

E o que retiras desta experiência de trabalho com o Júlio?
Eu nunca trabalhei com ninguém como o Júlio. A forma de trabalhar, a forma de olhar para a música, o cuidado com o pormenor. Tudo aquilo que aprendi levei para o meu trabalho. Além de saber muito de música, tem a capacidade de nos levar para um sítio onde ainda não estivemos. Se imaginarmos que estamos a subir uma montanha e, a dada altura, acharmos que não vamos conseguir continuar, o Júlio é a pessoa que diz para continuarmos a tentar. E acabamos por chegar ao cume. Subimos a montanha e não subimos sozinhos. Aliás, ninguém faz nada sozinho. Às vezes, só precisamos que alguém nos dê a mão para subirmos juntos. É isso que sinto quando trabalho com o Júlio. Sinto que estou a subir uma montanha. A meio da subida, começo a duvidar se sou capaz e ele embala-me com a certeza de que, pelo menos, vou acompanhada na tentativa. Outra coisa é a importância que ele dá à música. A música é sempre o mais importante. É importante perceber aquilo que a música quer retratar. Perceber como é que se vão juntar os instrumentos, a voz e as palavras para que todo o conjunto passe a mensagem que é para ser passada. Todo o caminho é feito para isto acontecer.  


        


 


 

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