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15 janeiro 2020
03:10
Silvia Mendes

Madonna esteve no meio de nós

Madonna esteve no meio de nós
STUFISH
Uma experiência artística surpreendentemente íntima por ser a da constelação da pop. O imaginário inquieto, provocador, criativo e generoso da rainha andou à solta no Coliseu dos Recreios. Rainha da pop? Do mundo em geral. Hoje sentiu-se isso.

Madonna trouxe Madame X a Lisboa - o "lugar onde pertence". As palavras são da cantora galáctica que se inspirou na riqueza dos sons da cidade lisboeta para a criação do novo disco e do espetáculo musical e visual que o alter ego Madame X personifica. Madame X desdobra-se numa série de identidades e sorve a diversidade cultural do mundo para depois partilhá-la. É "uma dançarina, uma professora, uma chefe de estado, uma dona de casa, uma amazona, uma prisioneira, uma estudante, uma mãe, uma filha, uma freira, uma cantora, uma santa, uma prostituta e uma agente secreta". Mulheres com força de braços e de pensamento que coabitam na "casa do amor" como lhe chama Madonna. Hoje estiveram todas no palco e a rainha até cantou o fado.

A soma dos imaginários das múltiplas identidades, a excelência dos músicos lusófonos convidados, um corpo de bailarinos de topo e a interação descontraída entre Madonna e o público resultaram numa performance grandiosa, magnetizante e íntima - por vezes quase imersiva - que pode muito bem liderar o pódio dos concertos do ano. O espetáculo da nova persona da rainha vai arrebatar, aquecer, aproximar e enlouquecer Lisboa até dia 23.

Madonna esteve no palco com as duas famílias que a têm acompanhado nos últimos tempos. A de sempre (os filhos Esther, Stella, Mercy James e David Banda) e a família mais recente que conheceu na cidade lisboeta onde vive desde 2017. Uma mão cheia de músicos - que nos são queridos e próximos - brilhou com a estrela norte-americana. Foi mais do que evidente a profunda gratidão de Madonna por ter no palco os portugueses Gaspar Varela (na guitarra portuguesa), Jéssica Pina (no trompete), Carlos Mil-Homens (na percussão), o cabo-verdiano Miroca Paris (nas congas e guitarra), a Orquestra de Batukadeiras de Portugal e Dino D'Santiago. "Esperei tanto tempo para vir a Lisboa mostrar o que me tem inspirado", confidenciou-nos às tantas. O agradecimento à musa Lisboa foi recorrente e retribuído com a mesma honestidade. Dino D'Santiago, o homem que apresentou os músicos e a vibração musical da cidade a Madonna, também agradeceu à rainha por levar a passear as culturas portuguesa e cabo-verdiana pelo mundo

Antes de continuarmos com o relato da experiência desta noite, uma nota mais prática. Mais uma vez, Madonna deu um passo à frente dos outros. À entrada do Coliseu, os telemóveis tiveram de ser acomodados numas bolsas de tecido (bolsas Yondr) que só foram abertas à saída. Correu tudo bem e certamente que vai haver quem siga o exemplo. Ninguém se importou com a exigência. A meio do espetáculo, Madonna, que não poupou no sentido de humor inteligente e aguçado, ainda perguntou se alguém estava a passar mal por estar sem telemóvel. Um sonoro "não" deu-lhe a resposta. Apenas uma memória futura terá um registo fotográfico da noite. É que Madonna tirou uma selfie e leiloou-a. Simples, eficaz e rentável. Juan, que veio de Espanha, ajudou a população do Malawi ao pagar uma quantia avultada à cantora pela relíquia. Ninguém "ressacou" por não ter telemóvel. Foi, aliás, um prazer redescobrir o que é ver um concerto apenas com os sentidos a absorver todos os ângulos do que ia acontecendo no palco. Madonna - 1. Tecnologias que só atrapalham a experiência - 0. 
 
Aconteceu tanta coisa que foi necessário convocar praticamente todos os sentidos para absorver este encontro mais próximo com Lady Madonna. A constelação do Michigan trocou os grandes estádios por salas mais pequenas para estar mais perto dos fãs e... esteve mesmo. Madonna esteve entre nós. Passeou, airosa, sedutora e magnética, pelo corredor, sentou-se numa cadeira na plateiaflirtou com uma existência privilegiada que conseguiu um dos lugares dourados das filas da frente. A cantora, mais habituada a ter multidões aos pés, confessou-nos que queria muito ter um espetáculo mais intimista para "ver, cheirar e sentir" o público

O espetáculo foi humano, quente e próximo, mas também teatral e rigorosamente encenado. Nada pôde escapar na transposição do imaginário povoado de Madonna para o palco. Sem paragens entre as canções e as respetivas "mudanças de cena", a narrativa alucinante de Madame X foi dividida em quatro atos e um festivo encore. Vimos a artista do micro detalhe, mas também uma Madonna mais humanizada, grata e confessional. Uma Madonna de peito aberto que ainda se deslumbra com o batimento cardíaco da música quando é tocada casualmente em bares ou casas de fado. A artista, que deu um rumo à pop nos anos oitenta, estava feliz por partilhar connosco o que redescobriu nesta fase da jornada. 
 

Por volta das dez da noite, as cortinas colossais vermelhas abriram para vermos as primeiras movimentações do mundo "louco" e maravilhoso de Madonna. O X, que estava ao centro, deu lugar a uma figura loira, serena e sedutora, envergando roupas de época a lembrar a guerra da revolução pela independência dos Estados Unidos. Movendo-se com a sua respeitável autoridade conquistada, nunca imposta, a cantora, agora com 61 anos, entrou em cena a cantar 'God Control' do último disco. "A arte está aqui para provar que a segurança é uma ilusão. Artistas estão aqui para incomodar a paz" foram as primeiras palavras a saltar do espetáculo para as consciências. As palavras do ativista e poeta James Baldwin iam sendo "datilografadas" compassadamente no ecrã. O manifesto artístico inaugurou a lista de assuntos urgentes que sobressaltam a artista. 

Madame X tem a missão de agitar consciências e de pô-las a dançar logo a seguir. Os sons de disparos e as "forças de segurança" que invadiram o palco ajudaram-nos a perceber que o foco estaria primeiro em questões internas norte-americanas, como o fácil acesso às armas e a violência policial. A luta pela individualidade das mulheres, a batalha pelos direitos da comunidade LGBT e a defesa da liberdade de expressão individual foram as outras mensagens que o coração culto e reivindicativo da performer meteu na frente de palco. 

'Express Yourself', cantado à capella com a ajuda das duas filhas da cantora, Stella e Esther, e 'Human Nature', partilhado com as proezas ao trompete de Jéssica Pina e o ritmo orgânico de Miroca Paris, remataram o primeiro ato. O elegante 'Vogue', o mais recente 'I Don't Search I Find' e 'American Life', de 2003, seguiram-se no alinhamento para compor o segundo.
 


Além desse lugar maior que é o da liberdade, a estonteante e multicultural experiência artística de Madame X andou por outros lugares - da nossa Lisboa à quente Colômbia - com uma paragem simples na pureza ritmada e solar de Cabo Verde. 'Batuka' teve a alegria da Orquestra de Batukadeiras, um grupo de mulheres que, na rotina dos seus dias nos subúrbios de Lisboa, dá vida aos batuques tradicionais das ilhas africanas. A entrada inesperada das Batukadeiras - pelos corredores laterais - provocou um motim pacífico de júbilo na sala. Madonna acompanhou-as no canto e na dança com uma felicidade quase infantil

A inspiração de Madonna é óbvia e diz-nos respeito. Está então nessa "nova Lisboa", como canta o músico português Dino D'Santiago que subiu ao palco a convite de Madame X. Juntos partilharam uma recriação de 'Sodade' da outra rainha, a grande Cesária Évora. O momento foi para prestar tributo a uma inspiração de Madonna já de longa data. 

Além dos sons mais quentes de África, como funaná ou a coladeira, o que inspira Madonna está também no fado que temos cravado no peito. Madame X cantou-nos um. 'Fado Pechincha' foi honrado na voz real da rainha que quis prestar homenagem a esta forma de expressão exclusiva do povo português. A acompanhar, estiveram as emoções refinadas dos acordes da guitarra portuguesa tão bem manuseadas pelo talento natural de Gaspar Varela, bisneto da fadista Celeste Rodrigues (irmã de Amália). Madonna "sentou-se à mesa com a gente" numa "casa portuguesa, com certeza".

Depois de termos estado num clube de fados - com samba, chá-chá-chá e amarguinha - e do pulo transatlântico que demos até à colombiana Medellín, ainda fomos surpreendidos com a interpretação imaculada, introspetiva e comovente da balada 'Frozen'. Ao piano - atrás de uma tela gigante suavemente transparente - Madonna deu espaço a um holograma onde dançava uma bailarina. Quem estava a ocupar graciosamente o ecrã era a filha mais velha da cantora, Lourdes Maria, que, mesmo à distância, protagonizou um dos momentos mais emotivos da noite de glória de Madame X. A partilha do palco com os filhos mostrou-nos uma mãe babada mas também muito consciente da importância da expressão artística no crescimento e na construção da visão do mundo dos seus rebentos. Coisa bonita de se ver.

'Come Alive', 'Future' e 'Crave' fecharam a sequência de temas que estavam ainda por estrear em solo nacional. A "oração" celebrativa 'Like a Prayer' transformou o Coliseu num lugar de culto privilegiado. Todos os que estavam na sala levantaram os braços para replicar os tiques que reconhecemos nos mais sincronizados coros de gospel.

No final, ao som de 'I Rise' e com os espíritos ao alto, Madonna e os bailarinos saíram da sala pelo corredor principal, no meio dos fãs de já muitas vidas artísticas e reinvenções da única rainha que reconhecem. 

Como disse a cantora Nina Simone, e faz sentido ir "buscá-la", "liberdade é não ter medo". Pois bem, Madonna ousou ser livre outra vez. É inspiração para ser continuada.

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