Há quatro anos, por esta altura, estava pelas montanhas do Quirguistão, sem fazer a mais pequena ideia que ela própria me iria mostrar algo mais que a sua grandeza: o mito do controlo. Nem todos temos que alcançar a montanha da mesma forma. Uns pelo simples prazer da caminhada, outros pela incessante fuga à rotina ou por mera curiosidade.
Durante uns dias percorremos os caminhos que nos levariam aos cinco mil metros de altitude. O caminho fez-se bem no início. Tínhamos o rio do nosso lado esquerdo, subidas pouco desniveladas e trilho verdejante e visível. Mochilas às costas, passos curtos e com cadência e os primeiros quilómetros não se mostraram atípicos.
Nos dias seguintes, o cenário deixou de ser bonito. Os trilhos desapareceram, as pegadas anteriores deram lugar a sólidas rochas esquecidas pelo tempo e a única solução era confiar no guia que gesticulava tentando passar tranquilidade. Demos com a fúria dos deuses e demorámos duas horas para conseguir meio quilómetro. Depois do nevão, a nitidez deu-nos uma vista sobre a Ala-Kul Lake completamente gelada em pleno fim de Maio. Esgotados e sentados, ficámos em silêncio a olhar para aquilo. Tudo o resto deixou de importar.
Faltavam mil metros para alcançarmos os cinco mil e a cabeça começava a acusar a doença da altitude. Algumas tonturas pediram passos mais lentos. E o nevão voltou. Fiquei enterrado até à cintura e demorei a soltar-me. Encharcados e desesperados, numa decisão a cinco, regressámos ao acampamento por ser mais seguro. Dias mais tarde, viemos a saber da avalanche que varreu toda aquela encosta.
"Moldar carácter", estas eram as palavras de um dos meus amigos cada vez que perguntava que raio fomos nós fazer à nossa vida para decidir experimentar aquele percurso. Prometi a mim mesmo não voltar à montanha. Mas se há coisa que ela própria me ensinou é que nós não controlamos coisa alguma. Não somos donos de nada, nem das nossas promessas ou inquietações. Um ano mais tarde estava a falhar a promessa nas montanhas da Patagónia, percorrendo os trilhos das Torres del Paine no Chile e, dias mais tarde, não satisfeito, nas montanhas de El Chaltén na Argentina.
As decisões são inexplicáveis. Demorei a perceber porque é no espaço de um ano o trauma tinha passado. Até que, afastado da montanha por uns tempos, percebi a falta que faz. Há CEO's de empresas que sentem a necessidade de fazer uma maratona como prova de superação. Pois eu que nem em mim mando, diria que a montanha fez-se presente na minha maneira de estar, no que à sobrelevação diz respeito. A montanha traz-nos dor e resiliência, orgulho e paciência. A montanha dá-nos silêncio e beleza, contenção e tudo menos certeza. Ir ao seu encontro é como um incêndio íntimo e sigiloso. Passados estes anos, tenho saudades de lá ir. "A dor precisa de espaço", escreveu um dia a romancista francesa Marguerite Duras; a montanha também.