
Desfrutar do detalhe
Já escrevi sobre as coisas simples e gosto sempre de voltar ao tema porque acredito que é no pequeno que o grande se esconde, é na simplicidade que se desvenda o extraordinário, é a partir dos detalhes que se alicerçam as certezas.
Gosto de reparar em pessoas que desfrutam dos detalhes. Por momentos parece que ali a vida se suspende, quem toma conta do cenário é o silêncio. Tudo pára. Não há movimento, não há barulho, não há ritmos alucinantes nem estímulos que distraem. Trata-se de uma espécie de bem-aventurança em todos os que se servem dos detalhes para o equilíbrio.
Nos Açores em pleno Verão, sempre que chegava a casa ao fim da tarde, ia buscar uma cerveja ao frigorífico, dava dois passos até ao alpendre que dá para o jardim e ali ficava uns bons minutos. Talvez chegasse a uma hora se o resto da família ainda se demorasse a tirar a areia dos pés como quem termina mais um dia de praia. Naqueles momentos não havia nada. Estava eu, a minha cerveja, os cigarros e o jardim de casa. Não havia carros, não havia conversas, não havia opiniões nem desavenças. Aquele jardim era o tempo ilustrado: com plantas ali semeadas quando os meus avós eram vivos, talvez bisavós e outros parentes. Árvores cuja morte tinha deixado cicatrizes no relvado. E as cicatrizes moldam o carácter. As cicatrizes contam histórias. E aquele jardim tinha muitas. Contadas e por contar. Naqueles minutos sou visitado por melros e pardais, brisas tardias e nuvens que já foram menos atarefadas. Entre goles de cerveja, bafos de cigarro e um olhar atento, todos aqueles detalhes compunham o fim de cada dia de Verão. O meu verão não teria sido mesmo sem aquelas meias-horas.
Há que treinar o olhar para o detalhe. Reparar nos outros primeiro. É preciso começar com o silêncio para se dar conta de tudo o resto. Notar como entre todos os que de tarde varrem as folhas do jardim, um ou outro dedica tempo a ajoelhar-se para passar a mão por uma flor que ali não estava há poucos dias, isolada em pleno alcatrão. Entender que alguém encostou na berma não por ter furado um pneu ou por querer descanso mas sim por querer confirmar que se trata de um milhafre a ave que nos sobrevoa o carro. Ver como a timidez toma conta da mesa do lado num nítido primeiro encontro onde o rapaz por mais de três vezes tem tentado entrelaçar os dedos na mão da rapariga - sem sucesso. Ficar na dúvida se o senhor que pede a terceira garrafa de branco fresquinho no restaurante estará em condições de levar todos os outros de regresso a casa. Ficar surpreendido com outros casais que descobrem aquele que sempre foi o nosso lugar de silêncio com vista para o mar. Perguntar por curiosidade como deram com aquilo. Ver como no metro, em hora de ponta, todo aquele aglomerado de gente ensardinhada tem no olhar aquilo que tenta esconder no coração.
Reparar nos detalhes e desfrutá-los. Só assim a vida é inteira.