A arte de reparar
O filme da Disney+ "Soul" trata o tema de forma muito clara. Mais do que uma viagem pelo jazz e pela vida agitada de uma realidade muito concreta em Nova Iorque, estende-nos o tapete ao despertar dos sentidos, o "reparar" nas coisas. Reparar, como gosto deste verbo, como gosto desta palavra. Uma palavra que se expande à observação, à acção de dar atenção a algo ou alguém e que, por fim, nos restabelece.
Reparem, reparamos pouco. Reparamos pouco nas coisas. Damos por nós em velocidade cruzeiro, cismados e em piloto automático. Ao reparar, é outra janela que se abre. É uma contínua oportunidade de acolher o espanto. Mas primeiro, o espanto. Reparar atravessa muito mais do que a visão. Tendemos a assumir "reparar" como "olhar atentamente". Mas vai mais longe. É ouvir atentamente, cheirar atentamente, tocar atentamente, saborear atentamente.
Não nos lembramos quando deixámos de reparar. Deixámo-nos levar pela velocidade da vida, do trabalho, da família. Tudo se tornou acelerado. E reparar pede tempo. Porque só se repara, querendo. Porque só se entende, parando. Ao reparar, encontramos sempre muito mais do que aquilo que procuramos. A beleza das respostas, a melodiosa e afinada sinfonia dos sentidos.
Reparar como é espantoso o que nos diz empregado do café: "ainda ontem me lembrei de si, nunca mais cá veio", descobrir que a pessoa ao nosso lado no metro ouve música a sorrir de olhos fechados, topar que o par adversário faz batota descarada com o olhar, aperceber que já está em flor, ver como o tipo da portagem está bem disposto ou como o pai manda a filha ao ar numa vertigem que passa a ser nossa também.
Reparar...