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03 abril 2020
08:30
Redação

Luís Represas: O Silêncio

Luís Represas: O Silêncio
DR
Convidámos o Luís Represas para escrever algumas palavras sobre a nova realidade que estamos todos a viver.

 

E o Silêncio fez-se ouvir. Para quem não sabia que o Silêncio faz parte da música, desta música com que a Natureza todos os dias, a todas as horas, ininterruptamente num repertório inesgotável nos deslumbra, ele aí está. Fácil os instrumentos da orquestra Natura serem confundidos, esmagados, arredados por outros géneros tão menos musicais (muito embora produtos do mesmo Criador). Já o Silêncio, quando se denuncia por força da partitura, devora-nos os sentidos. Ouvimo-lo, só percebendo que o ouvimos se faz dueto breve com um chilrear qualquer. Revela-se então todo o arranjo da obra escrito com a delicadeza que o Silêncio pede, humildemente, para se fazer ouvir. A dinâmica com que é executada abraça todos os níveis de comoção que o Universo inventou. Teríamos, acredito, uma escondida noção de tal, debaixo de toneladas de inutilidades guardadas no frio sótão das nossas existências.

Desde sempre convocados para a natural plateia de onde seríamos levados a cantar o refrão, porque assim está escrito, teimámos em não comparecer, pior, em ter o mais reprovável comportamento que se pode imaginar em toda a sala de concertos. E assim a obra não se ouvia, embora fosse sempre primorosamente executada. Todos para casa vociferou o Maestro, pois assim não há condições. Indignos da plateia e dos cobiçados camarotes, fomos empurrados para longe, confinados, reduzidos à mera condição de observadores, porque espectador é quem merece ser. Sala vazia. A batuta volteou e os primeiros compassos pertencem ao Silêncio. Suave, gentil, suporta a entrada de uma árvore que restolha, depois em contracanto o esvoaçar de um pássaro, ou talvez de um Anjo, que lhe anuncia o canto. A obra cresce, evolui. De novo o Silêncio. E agora sim. Abrem-se janelas repletas de sentidos confinados, atarantados primeiro, arrepiados depois, arrependidos de não terem sido merecedores de executar a sua parte no concerto.

O Maestro, desafiante, arrisca e o coro, envergonhado, expira as primeiras notas, respira para as outras que aí vêm, entende cada atitude que lhe é pedida, encaixa-se na dinâmica, não se faz ouvir nem mais nem menos só e apenas o que faz sentido para o resultado final. A sala já cheia, plateia e camarotes em uníssono mas só quando lhes é pedido. Porque o equilíbrio assim o exige. E quando o Silêncio se ouviu, soou uma gota. Seria de chuva, ou talvez uma lágrima feliz que não estava na partitura

Luís Represas
 

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